8.5.12


 Infância no Diário da Provyncia
(Olsen Jr.)

Eterno racismo e A mulher...
 (Elaine Tavares)

A mulher loba
(Amílcar Neves)

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DIÁRIO DA PROVYNCIA II
A INFÂNCIA QUE
NOS PERSEGUE

Por Olsen Jr.*
(olsenjr@matrix.com.br)


   Já está virando moda por aqui. Lugares públicos tocando discos de vinil. Pode ser bizarro num primeiro momento, mas é um diferencial. Sei disso porque não abri mão dos meus discos, tenho dois aparelhos para tocá-los e estou namorando um terceiro que vi em um antiquário.
   O “Canto do Noel” é um boteco situado na Rua Tiradentes, no centro de Florianópolis, onde funcionava o “Pettit” e que volta a ser um ponto de intelectuais que resolveram dar um tempo no disque-me-disque do Mercado Público com o seu cheiro de peixe característico e os pedintes e bordejadores de sempre. Pois é, o “Canto do Noel” tem produzido alguns diferenciais, um deles é este, precisamente, você ouve grandes intérpretes nacionais, começando logicamente pelo que empresta o nome ao local, em discos de vinil, claro tem outros compositores brasileiros de qualidade, mas também a história ou parte dela é mantida com as imagens, fotografias, recortes de jornal emoldurados e dispostos nas paredes criando verdadeiros nichos de saudades onde se vê como essa cidade era bonita. Desde o casario antigo até uma população que parecia mais romântica e pacata. O fotógrafo Édio Melo certamente tem muito a ver com todo aquele acervo.
   Parte da memória da cidade está ali naquelas paredes zelosamente guardada pelo carinho dos novos proprietários Edson e Sônia. O Rio de Janeiro e Florianópolis irmanadas por reminiscências, composições musicais, talentos e o que cada um dos clientes acrescenta com a própria experiência.
   No Empório Mineiro no Boulevard da Lagoa da Conceição, outro lugar aconchegante, vejo o disco de vinil rodando no toca-disco de cor alaranjada onde o poeta Vinicius de Moraes e o violonista Toquinho acabam de cantar “Meu Pai Oxalá” que tinha sido uma das músicas da trilha sonora da novela “O Bem Amado”...
   O disco terminou e continuou girando, a agulha acompanhava as voltas do vinil naquela faixa neutra que não tinha nada gravado nela e somente se ouvia o rodar do acetato. Ao invés de ir até lá e erguer a agulha, trocar o disco ou quem sabe por o mesmo para tocar novamente, fiquei observando o brilho da luz refletido no vinil rodando ali na minha frente e logo aquele aparelho é substituído pela eletrola lá de casa, em Chapecó quando os discos caiam um a um após tocarem naquele pino automático onde estavam empilhados (até cinco recomendavam os especialistas, para não arranharem uns com os outros)... E já não era mais o Vinicius de Moraes e sim o Billy Vaughn tocando “Look for a Star”.    Composta por Buzz Cason, nascido em Nashville (Tennessee) e que passou a assinar com o psudônimo de Garry Miles e, em 1960 compôs a música que o consagraria.
  “Look For a Star” que, aliás, está completando em 2010, 50 anos, era uma das preferidas da minha mãe. Também andei assobiando uma versão interpretada pelo Roberto Carlos “... Duas noites são teus lindos olhos, onde estrelas estão a brilhar, que ternura olhar mil estrelas, em teu olhar”...
   Outro dia assisti ao filme “Circus of Horrors” e a trilha sonora era Look for a Star na composição original de Garry Miles, e viajei novamente ouvindo aquilo associado a minha infância enquanto lia um dos 30 volumes da obra do Karl May, naquela edição encadernada da Ed. Globo de Porto Alegre e que vinha em caixas retratando em maravilhosos bicos de pena os personagens e o mundo criado pela mente prodigiosa do escritor alemão que marcou a minha juventude (minha, do Fernando Sabino, do Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, entre outros)...
    Num dos filmes do Harry Potter, a música Look for a Star também aparece de fundo, está muito impregnada na minha infância e parece que de muito mais gente...
    Em fração de segundos lembro de tudo isso enquanto observo ainda o disco de vinil ali sem que ninguém tome uma providência, acredito que foram aquelas faixas girando que me transportaram, como uma máquina do tempo...
   Alguém passou em frente e cortou o meu fluxo de pensamentos, mas ainda tive a sensação de ver por ali, a minha mãe com um pano tirando o pó de cima do móvel e afirmando que gostava muito daquela música!

 *Olá, camaradas, salve!
Segue a da semana...



Não faço ideia o que seria a música brasileira sem o Noel Rosa (1910-1937)...
Nascido em Vila Isabel, aprendeu a tocar bandolim de ouvido, mas logo passou para o violão...
Abandonou a Faculdade de Medicina porque acreditou que a música era a “sua” vocação...
Conseguiu legitimar o samba de morro fazendo uma ligação entre a classe média e o rádio...
O primeiro sucesso veio com a composição “Com que roupa” em 1930, produto de uma situação inusitada, sua mãe havia escondido suas roupas para tentar impedi-lo de sair para outra noite de boemia...  E ele exclamou “com que roupa que eu vou?” criando a partir daí um samba que está mais vivo do que nunca...
“Conversa de Botequim” é outro de seus muitos sucessos...
Noel Rosa morreu aos 26 anos com tuberculose... (Olsen Jr.)
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O racismo eternizado

Por Elaine Tavares

O feriado me encontrou lânguida, debruçada sobre um livro de contos do escritor britânico William Somerset Maugham, mais conhecido por sua magistral obra “A servidão humana”. O escrito que sorvi nesses dias relata algumas histórias passadas nos mares do sul, mais especificamente em espaços colonizados pelos ingleses, neozelandeses, alemães, franceses e estadunidenses, tais como Samoa, Havaí e outras da região da Polinésia, no Oceano Pacífico. Entre um relato e outro as páginas vão derramando todo o preconceito que alguém pode ter contra outro que não seja seu igual e a gente vai percebendo como o racismo tem suas raízes tão profundamente cravadas nos corações das gentes, ainda mais quando narrados com qualidade.
Cada uma das histórias vai descortinando a beleza das ilhas polinésias, sua natureza, sua exuberância e, ao mesmo tempo, toda a arrogância dos personagens, a maioria estrangeiros, usurpando a vida e a riqueza dos nativos. Os locais aparecem como os devassos, selvagens, feios, incapazes, vagabundos. As mulheres são mostradas quase sempre como prostitutas, incapazes de viver uma vida monogâmica, bem ao gosto do protestantismo burguês.
Ao penetrar nas páginas, capítulo a capítulo, fui sendo tomada pelo ódio. Pois dá para perceber que não apenas os personagens são preconceituosos e racistas, mas também o próprio autor.  Mesmo quando ele tenta “dourar” algum nativo, o faz de forma tão ostensivamente racista que causa engulhos. É impressionante como o espírito colonial se impregna nas pessoas. Na narrativa, cada estrangeiro ali naquelas ilhas invadidas, além de tomar as riquezas para si, insistia em menosprezar e aviltar os habitantes originários. Tudo tão igual.
 Li três contos e já ia desistir. Mas, o meu amigo Raimundo Caruso me havia indicado um em particular, que ficava mais ao final do livro. Segui. O conto chama-se “A chuva” e narra a história de dois casais de estrangeiros, um deles de missionários estadunidenses, presos em uma das ilhas em tempo de chuva, tendo por companhia uma prostituta, alegre e desbocada. O pastor, indignado com a presença da meretriz, inicia uma caçada psicológica de tamanha crueldade que chega a doer. Nele se vê o ódio aos nativos, às suas crenças, a sua cultura e toda a arrogância do opressor.  O “bom” pastor conta como subjugou os “naturalmente depravados” locais. E depravada era a mulher que, apesar de branca, era tão “desigual” como um nativo. Pois ele a degrada, a destrói, a reduz a nada. E tudo em nome da decência e dos bons costumes.
O interessante é que o final do conto é surpreendente e nos deixa entre o estupor e a alegria. Foi bom ter caminhado até o fim. A mulher, ainda que reduzida a quase perda de sua humanidade, vence. E, tal qual ela, também decido ligar a vitrola e fazer tocar, a todo volume, uma canção de regozijo diante da arrogância, do racismo e do desamor.
O livro “Histórias dos mares do sul” se redime diante de mim com a beleza desse conto. E até Maugham, ele mesmo um homem que sofreu discriminação por ser homossexual num tempo em que isso era um grande tabu. E a prostituta, senhorita Thompson, em alguma medida redime todas as personagens femininas/nativas tão aviltadas pelo autor.
Fiquei a matutar sobre como uma boa pena pode perpetuar a visão de um povo. E como faz falta aos oprimidos alguém que também possa contar as histórias desde o ponto de vista da comunidade das vítimas. Urge narrar a vida dos vencidos, e com boa pena, com boa pena... 
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A mulher, ouvindo estrelas...

Por Elaine Tavares

Jurara nunca mais beber. Não queria mais o mundo girando, girando, a boca solta, os pés trôpegos, a mente em voo livre. Haveria de ficar no chão. Desde pequena lhe diziam que andar pelo caminho das estrelas era coisa de louco. Ela tentara fugir. Não conseguira. Aos sete anos vira seu primeiro disco voador. Ninguém acreditara. Mas, na noite escura, lá estava ele. E mesmo quando no entardecer de um quente verão, quando todos viram aquele grande charuto cheio de janelas passando devagar, insistiram em negar. Ela ficara sozinha, olhando a coisa sumir no horizonte, rezando para que dali saísse um raio de luz e a levasse para sabe-se lá onde.
Sumida entre livros de Asimov e revistas que falavam sobre UFOS ela passou a infância e a adolescência. Eram seus amigos mais leais. Perry Rodan e suas peripécias, capitão Kirk, Spock, as mais incríveis criaturas dos planetas mais distantes. Eram suas redes a embalar a solidão e a incompreensão para as coisas do mundo “normal”. Mas, nesse mundo secreto não havia tristezas. Só esperanças de que um dia o mundo pudesse ser, de fato, habitável aos seres sensíveis capazes de falar com e ouvir estrelas, tal como dizia Bilac.
O tempo passou, a guria cresceu, o disco não veio, o mundo estragou. Tempos de rede não se prestam a solidões. Os edifícios escondem o céu, as estrelas sumiram, não falam mais. As palavras desconexas que reverberam na cabeça ninguém mais sabe dizer de onde vem. “Essa aí nunca foi normal”, dizem as vizinhas. E ela sorri, agradecida. Nunca quisera a normalidade de um mundo em escombros.
O cabelo embranqueceu, mas as velhas revistas seguem na cabeceira. As aventuras de Rodan para salvar a Terra ainda povoam seu mundo de teias de aranha. Quando é de noite, e todos dormem, ela sai pela rua a quebrar lâmpadas – única forma de ver o céu numa cidade feérica. Até ontem a acompanhava um garrafa de vodka, da boa. Por algum motivo desconhecido ela se acercara mais do que a pinga local. Talvez pela sonoridade. VOD-KA. Palavra doida, estranha, sensual.
Mas agora decidira. Por todos os deuses do Tahuantinsuyo. Não mais emborcaria o líquido quente e queimador. Haveria de saltitar pela rua como sempre fizera, mas o faria de cara. Já não tinha mais medo de não ser normal. Tomaria, como Raul, todos os banhos de chapéu. E falaria com os sleestaks, os vulcanos, encontraria mestre Ioda, voaria na Milenium Falcon. Cometeria todas as loucuras. Quem nesse mundo pode se arvorar em dizer o que é certo? Como podem impedir um ser de ouvir estrelas e dançar nas estradas de areia?
Nessa manhã ninguém estranhou quando ela saiu feito uma guerreira klingon, toda pintada. Deixara a casa arrumada, ajeitara o quintal. Na rua adormecida, jamais se poderia supor o caminho empreendido. Subiu devagar o morro do lampião, piou com os passarinhos, grunhiu com os bugios. Tomou banho de cachoeira e se deitou nua na relva verdinha. Decidiu esperar pelo raio. E ele veio, ao fim da tarde, quando as formigas já faziam caminho pelo corpo branquinho. Contam que ela foi levada por algum disco voador, e é bem possível. Nunca mais foi vista. O certo é que lá para os lados do lampião, há uma estranha árvore, com formas de mulher, que parece sorrir. Tem gente que jura que é ela e que em noites de lua clara, as bruxas cantam e dançam no lugar. Outros há que juram vê-la nas noites escurar a quebrar as lâmpadas, cantando canções sertanejas. Vai saber!...
Acompanhe o Blog da Elaine.
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Regina, mulher-loba do Brasil

Por Amílcar Neves*

Lobas são extremamente ciosas dos seus filhotes. Ou então: lobas são selvagemente ciosas. São mansas e pacíficas enquanto o mundo se lhes apresenta manso e pacífico. O problema é que elas se dão ao hábito de pensar e, ao pensar, tomam partido e definem-se criticamente frente a esse mesmo mundo. E ele que se comporte! Nem sonhe em sair da linha!
Os filhotes da Regina são os seus alunos, a Literatura (mais necessária e carinhosamente aquela próxima, feita em Santa Catarina) e, por consequência dos cuidados anteriores, os escritores catarinenses. Estes filhotes é que lhe importam.
Regina, loba, preocupa-se. Tem consciência política (não se trata aqui de partido político, é importante deixar bem claro), posiciona-se filosoficamente no meio em que vive, em que trabalha com uma dignidade que muita gente não tem para mostrar, no meio em que paga seus impostos como penitência para viver e participar da sua rua, do seu bairro, da sua cidade.
Com esse dinheiro, com seu imposto, paga o salário de vereadores e servidores públicos que têm a obrigação de considerar suas opiniões, ao invés de, numa forma simplista, demagógica e autoritária, ameaçá-la de processo judicial por "entravar a máquina pública" ao impedir, com sua força de mulher e sua coragem de ser humano, a "limpeza de um terreno público" no Estreito.
O terreno público em questão é uma área com árvores que abriga um sítio arqueológico protegido pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Acontece que a gerente da loja vizinha ao sítio, loja que vende a mais famosa marca de motos do mundo, decidiu limpar o terreno público ao lado. "Vive cheio de usuários de droga", foi a bandeira que ela levantou. Como o local estaria "desocupado", dita senhora dá a qualquer um o direito de supor que ela imaginava abrir ali um espaço informal e gratuito para servir de estacionamento exclusivo aos seus abastados clientes. Já que a loja naturalmente será contribuinte dos cofres públicos, a gerente achou-se no direito de acionar seus "contatos", de maneira informal (por que tanta burocracia, não é mesmo?), a fim de conseguir autorização para a limpeza - limpeza arrasadora com patrola, como um corte de cabelo com máquina zero.
Um vereador, que já deixara a secretaria municipal ligada ao caso para candidatar-se à reeleição, autorizou verbalmente o desmate, o desmonte, a "limpeza" de tolerância zero com o terreno - atribuição e autoridade de que ele já não mais dispunha, da mesma forma que não disporia ainda que estivesse no exercício do cargo, simplesmente por tratar-se de um sítio arqueológico: um patrimônio público (não do poder público) de interesse histórico.
Regina Brasil, mulher-loba, escolada, que dá um monte de aulas, educa pessoas e ensina-lhes cidadania, desconfiou quando retiraram a tela que protegia o terreno. No dia seguinte, bem cedo, a patrola iniciou a devastação. A professora correu, pôs-se à frente da máquina e impediu que o crime se consumasse em sua totalidade. Ela foi fotografada (as fotos saíram na imprensa e circulam pelos caminhos da internet), aplaudida e consagrada como heroína.
Mas as pressões sobre ela aumentam, e serão maiores assim que baixar a poeira da publicidade que envolve o seu ato. Como a ameaçou o pessoal da loja de motos, o que a forçou a registrar Boletim de Ocorrência na delegacia do bairro, "Você não sabe do que somos capazes! Você tem certeza que quer essa incomodação para o resto dos seus dias?"

*Amílcar Neves é escritor recém empossado na Academia Catarinense de Letras. Crônica publicada na edição de 2.5.2012 do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reproduzido com autorização do autor.

Praia do Fogo (Sambaqui). Fotos: Celso Martins

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