20.6.11

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Entardecer na avenida Beira-Mar Norte.
Florianópolis-SC. Fotos: Fernando Evangelista


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Sessão dupla
O estrogonofe e
as aventuras de
Amílcar Neves



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Estrogonofe

Por Amílcar Neves*

De manhã quase cedo, a mãe, dedo em riste, dirigia-se à professora:
- Quem te disse que tens o direito de chamar a atenção da minha filha? Nem que fosse em particular! Sabes muito bem que eu é que pago o teu salário, a tua boa vida. Colégio, por aqui, tem um monte. Se eu tiro a Dannyelly desta bosta de escola e outros pais fizerem o mesmo por causa dessa tua mania de querer impor ideias antiquadas, ultrapassadas, e de querer obrigar os alunos a estudar e fazer tarefas em casa, perturbando a tranquilidade deles, não só tu perdes o teu rico empreguinho como a escola fecha em dois tempos. Então, escuta bem, que não vou repetir: estou indo agora mesmo fazer uma reclamação formal à direção do estabelecimento. O próximo passo será registrar queixa no Procon [sigla de Procuradoria de Proteção e Defesa do Consumidor, segundo o Novo Dicionário Aurélio versão 6.0.6]. Depois é B. O. [boletim de ocorrência] direto.
No início da tarde, o rapaz, angustiado, procurou a assistente social:
- Não sei mais o que fazer, preciso conversar com alguém, e necessito dessa conversa agora, antes que eu caia de vez em desespero. Agradeço demais sua paciência, sei que é parte do seu trabalho, mas é que estou desorientado, me sinto perdido, não tem adiantado nada a minha mãe falar com ela, a mãe dela conversar com ela, e ainda tem o nosso filhinho, isso é o que me preocupa mais, claro, a nossa situação, a situação que estamos vivendo também me enche de preocupações e assombros, mas a senhora sabe, um filho sempre é um filho, o que a gente fizer com ele agora vai marcar toda a vida dele, o fato é que ela não se contenta mais com nada, diz que quer muito conhecer Buenos Aires, e Paris, e as ilhas gregas, e me xinga dizendo que não tenho dinheiro nem para levá-la a Biguaçu enquanto meu primo, do tráfico, tem vida boa, de rei, e ela só ralando, a senhora tem um tempinho para me escutar um pouco?, pois estou desesperado, não sei o que fazer...
Ao final do dia, o executivo, contrariado, mede palavras ao falar com o guarda:
- Não se pode correr riscos inutilmente, o Tenente Soiza aí sabe muito bem do que estou falando, por isso tenho amigos importantes e dedicados na alta cúpula do Governo, na alta magistratura do Tribunal e no alto comando da Polícia, gente que resolve. Não tenho amigos no alto escalão da Cultura porque isso não leva a nada. O que quero lhe dizer, Tenente Soiza aí, com todo o respeito pelo seu uniforme, é que lhe restam três opções: aceitar numa boa esse cinquentinha aí pra cerveja do final de semana e livrar a minha cara, fazer que não viu e não sabe de nada e sair de fininho no preju, ou terminar de preencher a bosta dessa multa por estacionamento em vaga de aleijado e se arrepender depois pelo resto da vida. A escolha é sua e eu não tenho mais tempo a perder.
Pelo meio da noite, na Câmara, logo após a hora do jantar, dois vereadores que deveriam estar em sessão colocam-se frente a frente a uma mesa de canto na cantina daquela casa do povo e olham-se fixamente em silêncio absoluto. Observando-os atentamente percebe-se que suas fisionomias mudam, de forma quase imperceptível, assumindo expressões de surpresa, desgosto, alegria, contrariedade, entusiasmo, concordância e juras solenes e profundas.
A fim de evitarem aborrecimentos com esses bagulhos eletrônicos que tudo ouvem e tudo veem e tudo leem e tudo registram, comunicam-se por telepatia quando precisam tratar de assuntos impublicáveis ligados a poder e dinheiro.

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Uma aventura assustadora

Por Amílcar Neves

Foi parar dentro de uma biblioteca, coisa inimaginável para ele. Não tinha nada o que fazer ali, não tinha o menor interesse pelas coisas guardadas naquele prédio enorme nem, menos ainda, pelo conteúdo daquelas coisas, sempre louvado, esse infindável conteúdo, como o sumo da sabedoria, do conhecimento e da vida, vejam lá se isso é possível, condensar a vida nas páginas dos livros. Nem que fossem livros eletrônicos.
E era exatamente isso que debatiam naquele momento: o futuro das obras literárias num cenário de confronto surdo entre o livro impresso e sua versão já vitoriosa em bits & bytes. Curioso é que nunca ouvi ninguém combater o livro em papel, considerava Manoel Osório com seus botões, nem aqui, hoje, agora, nem em qualquer outro lugar, pelos prejuízos que causa à natureza, grande responsável, o livro juntamente com os jornais impressos, pelo desmatamento do planeta e da Amazônia.
Não, o pessoal só tem elogios para essas resmas de folhas grampeadas, costuradas, coladas ou o que seja. Nunca me interessei por livros e, sinceramente, jamais precisei deles nem me fizeram eles falta alguma.
Assim divagava Manoel Osório durante a mesa-redonda na Biblioteca Universitária enquanto professores doutores, sentados a uma comprida mesa retangular, discutiam apaixonadamente o sexo dos anjos. Mais produtivo e útil, talvez, se discutissem o sexo entre anjos.
Nunca poderia supor que um dia se encontraria em tal situação, dentro de uma biblioteca, circunstância que devia debitar a Mônica, sua gostosa amiga e apetitosa vizinha cujo casamento com Eduardo vinha se desfazendo a olhos vistos. Estava ali pelas fabulosas pernas de Mônica, por nada mais.
Interessada em Literatura e seus meios de suporte, Mônica teve o desprazer de receber uma negativa de Eduardo, que se recusou a acompanhá-la pelas alamedas escuras e cada vez mais perigosas da Universidade (pelos perigos das alamedas da vida, em verdade). Com isso, Manoel Osório gozou o prazer de lhe fazer companhia naquele evento cultural de caráter tão erudito.
Encurtando a conversa: ao final da discussão, e fazia calor no recinto, Manoel Osório levantou-se entusiasmado com as agradáveis e estimulantes perspectivas sugeridas pelo retorno através das aleias escurecidas ao lado de Mônica e esqueceu o blusão de fibra sintética e marca famosa no encosto da cadeira que ocupava, perda que somente foi perceber horas mais tarde.
Como era final de semana, só pôde ir atrás do seu agasalho na segunda-feira, ocasião em que o encontrou bem de saúde e bem disposto no lugar mesmo em que o largara. Vestiu-o, pois já fazia frio na rua, para horrorizar-se na hora: tinha a nítida e incômoda sensação de que sabia tudo sobre escritores e seus livros.
Aquela imersão da blusa por dois dias em um ambiente que destilava Literatura por todos os lados...
Antes que o mal se propagasse, Manoel Osório tratou de mandar lavar a peça de roupa contaminada. Na quarta-feira tudo estava resolvido e a vida voltava aos trilhos, à rotina habitual, a salvo de sobressaltos.

*Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.
Crônicas publicadas nas edições de 1º.6 e 15.6 do jornal
Diário Catarinense (Florianópolis-SC).
Reproduções autorizadas pelo autor.

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