14.9.10




Neri Andrade
PINCELADAS

DA MEMÓRIA



Por Celso Martins

Foi como se um anjo determinasse:

- Neri, vá ser naïf na vida!

Não aconteceu bem assim, mas foi parecido.

Nascido na Praia Comprida/Caminho dos Açores em 26 de maio de 1954, Neri Agenor de Andrade estava com seus 18 anos de idade ao topar com um artista plástico trabalhando na casa de um vizinho. Preparava uma exposição, rodeado por tubos de tinta, pincéis de diferentes tamanhos e formatos, uma tela sobre um cavalete onde traços a lápis sumiam nas cores.

O artista era Rodrigo de Haro que, apesar de compenetrado na obra, notara o ar de espanto e admiração do jovem pescador que ali passara. Antes de ir embora, deixou uma sacola com telas, tintas e pincéis, material que Neri usou para fazer o primeiro quadro, mostrando o Casarão em que viveu. O trabalho foi deixado no local em que a mãe, dona Iracema Marta de Andrade, vendia rendas. Certo dia, o próprio Rodrigo apareceu para adquirir algumas peças, e se admirou com a pintura.

- De quem é?

- É do meu filho, fez com aquilo que o senhor deixou pra ele.

- Diga a ele que precisa assinar e colocar a data, pois já é um artista.

Depois que Rodrigo de Haro foi embora e a mãe narrou ao filho o diálogo e a aprovação, o jovem correu e registrou com o pincel na base do quadro: Neri Andrade, 1977. O reconhecimento mexeu com a cabeça dele, que, desde os 6 ou 7 anos de idade, acompanhava o pai Agenor José de Andrade na lavoura de café e mandioca, no engenho de farinha e na pesca permanente, com um espinhel de mil anzóis, primeiro, e uma rede de espera, depois.

Neri achou que podia ser um artista e retratar esse universo cultural, cujas bases físicas estavam em franca extinção naquela década, e resolveu procurar Rodrigo em sua residência no Centro de Florianópolis. Ao chegar, encontrou o pai de Rodrigo, Martinho, executando suas pinturas. Ficou ali conversando com ele e observando o misturar das tintas, a precisão das pincelas, fascinado em ver as imagens brotando na tela.

Quando Rodrigo chegou, Neri foi logo ao assunto, pedindo que indicasse uma escola onde ele pudesse aprender a pintar, ouvindo surpreso mais ou menos o seguinte:

- Não precisa de escola. Se estudar vai começar a pintar vasinho com flores.

A conversa se estendeu por mais algum tempo e Neri saiu determinado a ser artista plástico e, sem saber, filiado à escola naïf - ou arte primitiva moderna, produzida por artistas sem formação acadêmica, caracterizada pela simplicidade e falta de alguns elementos ou qualidades presentes na arte produzida por artistas formados. Mas nem posso isso menos belas ou fascinantes.

Neri e a primeira pintura: obra quardada com muito carinho

Tintas, pincéis, redes e ostras


A habilidade com os traços chegou cedo.

- Desde pequeno, na escola, eu desenhava. E por causa disso as histórias que a professora pedia para escrever tinham que ser ilustradas.

Hoje, na maturidade, com cerca de três mil quadros produzidos, faz um balanço:

- Eu pinto a minha vida, o que eu vivo. O casario antigo – eu morei num -, as festas do Divino, as igrejas da Ilha. Procuro resgatar isso aí, pois sei que um dia, infelizmente, não vai ter para contar a história.

Sua estréia aconteceu em 1978, na Coletiva de 12 Artistas Novos de Florianópolis, na Galeria Victor Meirelles. Casado em 1979 com Édia Cláudia Andrade, no ano seguinte ganhou o primeiro prêmio, adquirindo uma geladeira. Daí para frente foi uma carreira ascendente, um permanente aperfeiçoar da técnica, de composições, combinação das cores, pesquisas e temas. Em 2004, por exemplo, representou o Brasil no mês de maio no Catálogo Internacional Anual 2004 da CFM The Power of Flight, da General Eletric, produtora de turbinas para aeronaves.

Em 2006, foi premiado na Bienal Naïf, realizada em Piracicaba –SP, com os quadros “Pescaria noturna” e “Interior de um engenho”. Segundo o crítico Oscar D’Ambrosio, num texto sobre o trabalho de Neri Andrade, “o segredo está em não oferecer o óbvio, mas criar uma visão pessoal de um universo no qual se sente à vontade por conviver com ele desde criança”. Assim, “cada novo quadro torna-se então uma memória afetiva de um local que perdeu suas características originais. O bairro que ele pinta não existe mais da maneira que Neri Andrade o retrata, mas é preservado pela sua memória, pela forma como transforma suas lembranças em quadros bem elaborados”.

Somos tentados a pensar, ao observar atento um quadro de Neri, que ele leva dias, semanas talvez, para concluir uma obra, tal a delicadeza dos traços e dos detalhes. Mas não é isso que acontece. Quando não está no mar pescando ou cuidando de sua criação de moluscos, o artista vai para o estúdio no segundo piso de sua residência e se põe a trabalhar. Não tem propriamente uma rotina de horário. Trabalha em duas ou três telas simultaneamente e, ao longo de uma semana, as deixa terminadas. Ou seja: é rápido no pincel.

As quase duas dezenas de quadros que preparou para a exposição que abre hoje (14.9) surgiram em cerca de um mês e meio, com direto a um intervalo devido à forte gripe que o deixou prostrado na cama. Todos eles e mais alguns serão expostos em maio de 2011 na ilha açoriana de São Miguel, conforme notícia que acaba chegar com Paulo Caminha, recém retornado de Portugal. Atualmente, a produção de Neri Andrade é comercializada em seu estúdio ou na galeria de Helena Fretta. (C. M.)




Artista mostra as obras premiadas na Bienal Naïf de 2006

Obras que podem ser conferidas hoje à noite

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