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RIO, MÍDIA E TRÁFICO
RIO, MÍDIA E TRÁFICO
Por Celso Vicenzi*
Rio 40 graus. A cidade ferve. E a chapa está quente, principalmente para quem é negro ou pardo e pobre. A Globo filma a casa de um chefe do tráfico no Complexo do Alemão. A “mansão do narcotráfico”, anunciam as chamadas para o telejornal. A casa tem banheira de hidromassagem, ar-condicionado e uma pequena piscina. Interessante: a “mansão” é muito parecida com qualquer casa de classe média. E depois se queixam da perda de credibilidade...
É a mesma mídia que confunde investigação com espetacularização da notícia. Mostra e omite o que quer. Azar do telespectador, se não souber onde buscar melhores informações.
A realidade é diferente do que se vê numa tela de TV. O real pode ser justamente aquilo que não foi mostrado, a frase que não foi dita, a fonte que deixou de ser entrevistada. A realidade mostrada na TV é uma escolha. Tudo depende de quando se liga ou se desliga uma câmera. E para onde se aponta, em busca de imagens.
Foto da revista Carta Capital: vários soldados entrincheirados atrás de um automóvel, em posição de tiro, olhares tensos contra a suposta ameaça que vem do morro. Extremamente dramática, não fosse por um detalhe: um fotógrafo preferiu mostrar a cena por outro ângulo. À frente dos soldados e de costas para o morro – até mesmo sem coletes – vários fotógrafos registravam o que seria um momento supostamente “perigoso” da invasão. Realidade e ficção, a separação é muito tênue.
O perigo é real, sim. A ocupação das favelas pela polícia é uma conquista da cidadania. Os moradores dessas áreas têm o direito de viver em paz. E o Estado têm a obrigação de levar aos morros cariocas saúde, educação, lazer, saneamento, habitação – e não apenas policiais. Alguns destes, inclusive, muito parecidos, no modo de agir, com bandidos. Mas obras sociais não costumam dar muito ibope nos telejornais. A mídia prefere a adrenalina do confronto. A cobertura da televisão – e de outras mídias – na operação de ocupação das favelas é marcada, não raro, por exageros, omissões, sensacionalismo e ausência de respostas a perguntas essenciais.
Por que territórios do tráfico, sempre alardeados como inexpugnáveis, foram tomados com tanta facilidade? Por que só agora e não antes? Por que o que se dizia impossível foi conquistado em menos de duas horas? Por que todos os principais chefes do narcotráfico escaparam?
Uma das pistas para entender por que as autoridades finalmente resolverem agir é a presença de interesses econômicos ainda maiores: a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Não há mais tempo a perder. Haverá bilhões de dólares em investimentos. O dinheiro vem, mas precisa gerar lucros; por isso exige segurança.
O Rio tem centenas de favelas. Porque o povo precisa morar em algum lugar. E os governos sempre investiram muito pouco em políticas habitacionais decentes. Habitação não é política de Estado – vire-se o cidadão do jeito que puder e com o salário que tiver. Algumas dessas favelas são verdadeiras cidades – 200 mil, 400 mil habitantes. Cidadãos a quem foram negados quase todos os direitos. Entregues à própria sorte, “adotados” pelo narcotráfico. Criminalizados pela mídia, como se o tráfico estivesse circunscrito aos casebres que se penduram nos morros da cidade. Como se pobreza fosse sinônimo de criminalidade.
Por isso é bem-vinda a ação do Estado para garantir a segurança dessas comunidades. Mas falta contextualizar adequadamente o problema, coisa que a mídia raramente faz.
A ONU calcula que o narcotráfico movimenta 400 bilhões de dólares por ano no mundo. É mais do que fatura a indústria farmacêutica global. Mais do que a indústria do tabaco. Mais do que a indústria do álcool. É claro que esse dinheiro não está nas favelas. No entanto, é onde se concentram quase 100% da repressão ao tráfico. A fortuna gerada pelas drogas circula com desenvoltura na “alta sociedade”, não raro, em mãos de pessoas “acima de qualquer suspeita”. Gente de sobrenome importante e cargo idem. Sem esquecer que são também os principais consumidores. Menos de 20% da droga produzida no planeta é apreendida por forças policiais. E quanto maior a repressão, mais o preço sobe e o lucro aumenta.
Enxuga-se gelo, para abusar de um clichê. Melhor seria se as emissoras de rádio e TV dedicassem mais espaço para discutir o tema em toda a sua amplitude e complexidade. Para começo de conversa, por que a repressão só chega ao varejo, aos traficantes da favela? Os maiores donos desse bilionário comércio – esses, sim! – moram em mansões e possuem contas de muitos dígitos em instituições financeiras e são proprietários ou sócios de grandes negócios. Por que a mídia não dedica generosos espaços para questionar as fortunas que se criam da noite para o dia? Por que não especula sobre empresários que ganham rios de dinheiro mesmo que suas lojas estejam quase vazias? Ou que seus empreendimentos mostrem-se claramente deficitários? Afinal, quem ganha com as drogas? O produtor e o traficante do morro ficam com muito pouco. O grande lucro é depositado em bancos, em paraísos fiscais, circula no mercado financeiro, nas mãos de poucos. Pessoas que não precisam se entrincheirar em favelas. Gente que corrompe agentes públicos para deixar a droga circular. Produtores de armas e as forças de repressão também são sócios desse mercado. Só quem perde é a sociedade.
Não espere ouvir, no rádio ou na TV, que não há uma razão técnica para decidir o que é uma droga legal ou ilegal. Até o início do século, havia lojas nos Estados Unidos para fumar ópio e a maconha também podia ser tragada livremente. A criminalização não impediu nem diminuiu o consumo, mas gerou lucros exorbitantes. Um quilo de ópio custa algo em torno de 90 dólares no Afeganistão e 290.000 dólares nos Estados Unidos. Um lucro de 322.000%.
Drogas ilegais devem ser reprimidas a qualquer custo porque levam o sujeito a praticar mais crimes. Certo? Errado! Pesquisa da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, mostrou que 21% dos presos por atos violentos, em 1999, nos EUA, cometeram seus crimes sob o efeito do álcool, 3% haviam usado crack e 1%, heroína. Detalhe: a maioria dos crimes foi praticada por pessoas sóbrias.
E droga por droga, a nicotina, que se compra em qualquer esquina, é a que tem maior poder de criar dependência. Com consequências trágicas à saúde do usuário e enorme ônus ao sistema público de saúde. O problema do alcoolismo também é subestimado. Segundo a ONU, 1,5 bilhão de pessoas sofrem de alcoolismo, contra 55 milhões de dependentes de drogas ilegais.
Mas, ano após ano, aumentam os recursos destinados à repressão das drogas ilegais. Sobra muito pouco, em contraste, para as campanhas educativas. E, no entanto, essa política antidrogas é um fracasso. Especialistas são unânimes em afirmar que a repressão nunca resolverá o problema. Mas a hipocrisia de uns, o lucro de outros, a visão moral e cultural e a desinformação da maioria sustentam um ciclo que produz mais vítimas do que soluções.
Pesquisa realizada pela ONU em 112 países mostrou que o consumo de maconha, cocaína, heroína e anfetaminas aumentou 60% entre 1996 e 2001. Entre 1985 e 1996, triplicou a produção mundial de ópio e duplicou a produção de coca.
Consumir drogas é um hábito do ser humano há milhares de anos. Os poderes da papoula são conhecidos há pelo menos 8 mil anos. A coca já era usada pelos habitantes dos Andes há 2 mil anos. Chineses usavam a maconha, no século I a.C., como remédio. Várias pessoas e sociedades fizeram uso de drogas sem grandes problemas. Segundo o psicanalista Oscar Reymundo, “houve um tempo em que o uso das substâncias esteve a serviço de práticas religiosas e espirituais que tiveram como efeito a criação de universos simbólicos tão ricos quanto complexos nos quais os indivíduos podiam encontrar um lugar no mundo”. Mudou o mundo, a cultura, os valores sociais. Se agora a lógica é a do consumismo, na tentativa de obter prazer e felicidade a qualquer custo, a droga não seria exceção.
A mídia tem papel destacado na sustentação ideológica desse modelo de sociedade que exaure os recursos do planeta, devasta a natureza e oprime a maior parte dos seres humanos, para usufruto de poucos. Um modelo alienante, competitivo, repressor baseado na exclusão, na discriminação e na desigualdade, fonte de preconceitos, medos e angústias. Em síntese: uma droga!
É a mesma mídia que confunde investigação com espetacularização da notícia. Mostra e omite o que quer. Azar do telespectador, se não souber onde buscar melhores informações.
A realidade é diferente do que se vê numa tela de TV. O real pode ser justamente aquilo que não foi mostrado, a frase que não foi dita, a fonte que deixou de ser entrevistada. A realidade mostrada na TV é uma escolha. Tudo depende de quando se liga ou se desliga uma câmera. E para onde se aponta, em busca de imagens.
Foto da revista Carta Capital: vários soldados entrincheirados atrás de um automóvel, em posição de tiro, olhares tensos contra a suposta ameaça que vem do morro. Extremamente dramática, não fosse por um detalhe: um fotógrafo preferiu mostrar a cena por outro ângulo. À frente dos soldados e de costas para o morro – até mesmo sem coletes – vários fotógrafos registravam o que seria um momento supostamente “perigoso” da invasão. Realidade e ficção, a separação é muito tênue.
O perigo é real, sim. A ocupação das favelas pela polícia é uma conquista da cidadania. Os moradores dessas áreas têm o direito de viver em paz. E o Estado têm a obrigação de levar aos morros cariocas saúde, educação, lazer, saneamento, habitação – e não apenas policiais. Alguns destes, inclusive, muito parecidos, no modo de agir, com bandidos. Mas obras sociais não costumam dar muito ibope nos telejornais. A mídia prefere a adrenalina do confronto. A cobertura da televisão – e de outras mídias – na operação de ocupação das favelas é marcada, não raro, por exageros, omissões, sensacionalismo e ausência de respostas a perguntas essenciais.
Por que territórios do tráfico, sempre alardeados como inexpugnáveis, foram tomados com tanta facilidade? Por que só agora e não antes? Por que o que se dizia impossível foi conquistado em menos de duas horas? Por que todos os principais chefes do narcotráfico escaparam?
Uma das pistas para entender por que as autoridades finalmente resolverem agir é a presença de interesses econômicos ainda maiores: a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Não há mais tempo a perder. Haverá bilhões de dólares em investimentos. O dinheiro vem, mas precisa gerar lucros; por isso exige segurança.
O Rio tem centenas de favelas. Porque o povo precisa morar em algum lugar. E os governos sempre investiram muito pouco em políticas habitacionais decentes. Habitação não é política de Estado – vire-se o cidadão do jeito que puder e com o salário que tiver. Algumas dessas favelas são verdadeiras cidades – 200 mil, 400 mil habitantes. Cidadãos a quem foram negados quase todos os direitos. Entregues à própria sorte, “adotados” pelo narcotráfico. Criminalizados pela mídia, como se o tráfico estivesse circunscrito aos casebres que se penduram nos morros da cidade. Como se pobreza fosse sinônimo de criminalidade.
Por isso é bem-vinda a ação do Estado para garantir a segurança dessas comunidades. Mas falta contextualizar adequadamente o problema, coisa que a mídia raramente faz.
A ONU calcula que o narcotráfico movimenta 400 bilhões de dólares por ano no mundo. É mais do que fatura a indústria farmacêutica global. Mais do que a indústria do tabaco. Mais do que a indústria do álcool. É claro que esse dinheiro não está nas favelas. No entanto, é onde se concentram quase 100% da repressão ao tráfico. A fortuna gerada pelas drogas circula com desenvoltura na “alta sociedade”, não raro, em mãos de pessoas “acima de qualquer suspeita”. Gente de sobrenome importante e cargo idem. Sem esquecer que são também os principais consumidores. Menos de 20% da droga produzida no planeta é apreendida por forças policiais. E quanto maior a repressão, mais o preço sobe e o lucro aumenta.
Enxuga-se gelo, para abusar de um clichê. Melhor seria se as emissoras de rádio e TV dedicassem mais espaço para discutir o tema em toda a sua amplitude e complexidade. Para começo de conversa, por que a repressão só chega ao varejo, aos traficantes da favela? Os maiores donos desse bilionário comércio – esses, sim! – moram em mansões e possuem contas de muitos dígitos em instituições financeiras e são proprietários ou sócios de grandes negócios. Por que a mídia não dedica generosos espaços para questionar as fortunas que se criam da noite para o dia? Por que não especula sobre empresários que ganham rios de dinheiro mesmo que suas lojas estejam quase vazias? Ou que seus empreendimentos mostrem-se claramente deficitários? Afinal, quem ganha com as drogas? O produtor e o traficante do morro ficam com muito pouco. O grande lucro é depositado em bancos, em paraísos fiscais, circula no mercado financeiro, nas mãos de poucos. Pessoas que não precisam se entrincheirar em favelas. Gente que corrompe agentes públicos para deixar a droga circular. Produtores de armas e as forças de repressão também são sócios desse mercado. Só quem perde é a sociedade.
Não espere ouvir, no rádio ou na TV, que não há uma razão técnica para decidir o que é uma droga legal ou ilegal. Até o início do século, havia lojas nos Estados Unidos para fumar ópio e a maconha também podia ser tragada livremente. A criminalização não impediu nem diminuiu o consumo, mas gerou lucros exorbitantes. Um quilo de ópio custa algo em torno de 90 dólares no Afeganistão e 290.000 dólares nos Estados Unidos. Um lucro de 322.000%.
Drogas ilegais devem ser reprimidas a qualquer custo porque levam o sujeito a praticar mais crimes. Certo? Errado! Pesquisa da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, mostrou que 21% dos presos por atos violentos, em 1999, nos EUA, cometeram seus crimes sob o efeito do álcool, 3% haviam usado crack e 1%, heroína. Detalhe: a maioria dos crimes foi praticada por pessoas sóbrias.
E droga por droga, a nicotina, que se compra em qualquer esquina, é a que tem maior poder de criar dependência. Com consequências trágicas à saúde do usuário e enorme ônus ao sistema público de saúde. O problema do alcoolismo também é subestimado. Segundo a ONU, 1,5 bilhão de pessoas sofrem de alcoolismo, contra 55 milhões de dependentes de drogas ilegais.
Mas, ano após ano, aumentam os recursos destinados à repressão das drogas ilegais. Sobra muito pouco, em contraste, para as campanhas educativas. E, no entanto, essa política antidrogas é um fracasso. Especialistas são unânimes em afirmar que a repressão nunca resolverá o problema. Mas a hipocrisia de uns, o lucro de outros, a visão moral e cultural e a desinformação da maioria sustentam um ciclo que produz mais vítimas do que soluções.
Pesquisa realizada pela ONU em 112 países mostrou que o consumo de maconha, cocaína, heroína e anfetaminas aumentou 60% entre 1996 e 2001. Entre 1985 e 1996, triplicou a produção mundial de ópio e duplicou a produção de coca.
Consumir drogas é um hábito do ser humano há milhares de anos. Os poderes da papoula são conhecidos há pelo menos 8 mil anos. A coca já era usada pelos habitantes dos Andes há 2 mil anos. Chineses usavam a maconha, no século I a.C., como remédio. Várias pessoas e sociedades fizeram uso de drogas sem grandes problemas. Segundo o psicanalista Oscar Reymundo, “houve um tempo em que o uso das substâncias esteve a serviço de práticas religiosas e espirituais que tiveram como efeito a criação de universos simbólicos tão ricos quanto complexos nos quais os indivíduos podiam encontrar um lugar no mundo”. Mudou o mundo, a cultura, os valores sociais. Se agora a lógica é a do consumismo, na tentativa de obter prazer e felicidade a qualquer custo, a droga não seria exceção.
A mídia tem papel destacado na sustentação ideológica desse modelo de sociedade que exaure os recursos do planeta, devasta a natureza e oprime a maior parte dos seres humanos, para usufruto de poucos. Um modelo alienante, competitivo, repressor baseado na exclusão, na discriminação e na desigualdade, fonte de preconceitos, medos e angústias. Em síntese: uma droga!
*Celso Vicenzi é jornalista.
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