19.5.11

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COISAS DA LÍNGUA

A polêmica do livro didático segundo Emanuel Medeiros Vieira, debatida por Marcos Bagno em texto encaminhado pelos jornalistas Celso Vicenzi e Fernando Evangelista.


MEC

A CELEBRAÇÃO DA IGNORÂNCIA:
O MEC INSULTA A
LÍNGUA PORTUGUESA


Por Emanuel Medeiros Vieira


Pensamos – romanticamente – que o ruim não pode ficar pior.

Pode!

O MEC aprovou um livro “didático” que insulta o vernáculo.

Tal cartilha, como observou alguém, é um passo importante na marcha “firme e segura da burrice neste país.”

Segundo o livro, os alunos não mais cometerão erros de concordância gramatical.

“Ao agredirem a pobre língua portuguesa serão imediatamente absolvidos e consolados na condição de vítimas de ‘preconceito linguístico’.

É a celebração da ignorância!

Um observador constatou que a aprovação de tal cartilha revela o rebaixamento dos quadros do ministério (da Educação!), na maioria indicados por via partidária.

O MEC nem consegue fazer corretamente um exame do ENEM!

Sempre dá problemas!

É o pavor da meritocracia.

Se os alunos podem continuara falar e a escrever “os livro”, “nós vai” etc: o que os professores estão fazendo na escola?

O livro se chama “Por uma vida melhor” e integra uma coleção chamada ”Viver, Aprender”, e foi adotado pelo Ministério da Educação.

Evanildo Bechara, com 83 anos, autor de dicionário e gramática, nomeado autoridade suprema do Acordo Ortográfico pela Academia Brasileira de Letras, afirmou: “O aluno não vai para a escola para aprender ‘nos pega o peixe’. Isso ele já diz de casa, já é aquilo que nós chamamos de língua familiar, a linguado contexto doméstico.’

“O contribuinte contrata professores para cuidar do ensino, não para rebaixá-lo desse modo.”

Para que valem então Enem e Enad?

Se for para ensinar errado, os exames não são necessários.

Concluo com Rui Barbosa, como fez outro observador: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos do maus,o homem chega a desanimar da virtude,a rir-se da honra,a ter vergonha de ser honesto.”

(Salvador, maio de 2011)

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Discussão sobre o
livro didático só
revela ignorância
da grande imprensa


Por Marcos Bagno*

Para surpresa de ninguém, a coisa se repetiu. A grande imprensa brasileira mais uma vez exibiu sua ampla e larga ignorância a respeito do que se faz hoje no mundo acadêmico e no universo da educação no campo do ensino de língua. Jornalistas desinformados abrem um livro didático, lêem metade de meia página e saem falando coisas que depõem sempre muito mais contra eles mesmos do que eles mesmos pensam (se é que pensam nisso, prepotentemente convencidos que são, quase todos, de que detêm o absoluto poder da informação). Polêmica? Por que polêmica, meus senhores e minhas senhoras? Já faz mais de 15 anos que os livros didáticos de língua portuguesa disponíveis no mercado e avaliados e aprovados pelo Ministério da Educação abordam o tema da variação lingüística e do seu tratamento em sala de aula. Não é coisa de petista, fiquem tranqüilas senhoras comentaristas políticas da televisão brasileira e seus colegas explanadores do óbvio.
Já no governo FHC, sob a gestão do ministro Paulo Renato, os livros didáticos de português avaliados pelo MEC começavam a abordar os fenômenos da variação lingüística, o caráter inevitavelmente heterogêneo de qualquer língua viva falada no mundo, a mudança irreprimível que transformou, tem transformado, transforma e transformará qualquer idioma usado por uma comunidade humana. Somente com uma abordagem assim as alunas e os alunos provenientes das chamadas “classes populares” poderão se reconhecer no material didático e não se sentir alvo de zombaria e preconceito. E, é claro, com a chegada ao magistério de docentes provenientes cada vez mais dessas mesmas “classes populares”, esses mesmos profissionais entenderão que seu modo de falar, e o de seus aprendizes, não é feio, nem errado, nem tosco, é apenas uma língua diferente daquela – devidamente fossilizada e conservada em formol – que a tradição normativa tenta preservar a ferro e fogo, principalmente nos últimos tempos, com a chegada aos novos meios de comunicação de pseudoespecialistas que, amparados em tecnologias inovadoras, tentam vender um peixe gramatiqueiro para lá de podre.
Enquanto não se reconhecer a especificidade do português brasileiro dentro do conjunto de línguas derivadas do português quinhentista transplantados para as colônias, enquanto não se reconhecer que o português brasileiro é uma língua em si, com gramática própria, diferente da do português europeu, teremos de conviver com essas situações no mínimo patéticas.
A principal característica dos discursos marcadamente ideologizados (sejam eles da direita ou da esquerda) é a impossibilidade de ver as coisas em perspectiva contínua, em redes complexas de elementos que se cruzam e entrecruzam, em ciclos constantes. Nesses discursos só existe o preto e o branco, o masculino e o feminino, o mocinho e o bandido, o certo e o errado e por aí vai.
Darwin nunca disse em nenhum lugar de seus escritos que “o homem vem do macaco”. Ele disse, sim, que humanos e demais primatas deviam ter se originado de um ancestral comum. Mas essa visão mais sofisticada não interessava ao fundamentalismo religioso que precisava de um lema distorcido como “o homem vem do macaco” para empreender sua campanha obscurantista, que permanece em voga até hoje (inclusive no discurso da candidata azul disfarçada de verde à presidência da República no ano passado).
Da mesma forma, nenhum lingüista sério, brasileiro ou estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades lingüísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali, fechados em sua comunidade, em sua cultura e em sua língua. O que esses profissionais vêm tentando fazer as pessoas entenderem é que defender uma coisa não significa automaticamente combater a outra. Defender o respeito à variedade lingüística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso repetir isso a todo momento.
Não é preciso ensinar nenhum brasileiro a dizer “isso é para mim tomar?”, porque essa regra gramatical (sim, caros leigos, é uma regra gramatical) já faz parte da língua materna de 99% dos nossos compatriotas. O que é preciso ensinar é a forma “isso é para eu tomar?”, porque ela não faz parte da gramática da maioria dos falantes de português brasileiro, mas por ainda servir de arame farpado entre os que falam “certo” e os que falam “errado”, é dever da escola apresentar essa outra regra aos alunos, de modo que eles – se julgarem pertinente, adequado e necessário – possam vir a usá-la
TAMBÉM. O problema da ideologia purista é esse também. Seus defensores não conseguem admitir que tanto faz dizer assisti o filme quanto assisti ao filme, que a palavra óculos pode ser usada tanto no singular (o óculos, como dizem 101% dos brasileiros) quanto no plural (os óculos, como dizem dois ou três gatos pingados).
O mais divertido (para mim, pelo menos, talvez por um pouco de masoquismo) é ver os mesmos defensores da suposta “língua certa”, no exato momento em que a defendem, empregar regras lingüísticas que a tradição normativa que eles acham que defendem rejeitaria imediatamente. Pois ontem, vendo o Jornal das Dez, da GloboNews, ouvi da boca do sr. Carlos Monforte essa deliciosa pergunta: “Como é que fica então as concordâncias?”. Ora, sr. Monforte, eu lhe devolvo a pergunta: “E as concordâncias, como é que ficam então?

*Escritor e linguista, professor da Universidade de Brasília.
Texto recomendado pelos jornalistas
Fernando Evangelista e Celso Vicenzi.

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