7.9.11

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Arrogância ou
Vanderlei & Jaqueline


Chove muito por aqui. Foto: Celso Martins


Por Amílcar Neves*

As coisas das quais vamos aqui tratar aconteceram muito, muito tempo atrás. Esta é a desvantagem fatal que têm as crônicas semanais comparativamente às coirmãs diárias: fatos ocorridos na véspera ou no dia da sua publicação, caso o cronista deseje abordá-los, já se terão tornado acontecimentos remotos e quase esquecidos pelos leitores - e totalmente esquecido pelos não leitores, essas pessoas que se abarrotam de televisão, celular e internet, e não sabem o que fazer com as sucessivas montanhas de informações que os soterram, porque não conseguem filtrar o que é consistente nem articular em pensamentos e reflexões próprios tudo o que os atinge, pois, como em qualquer ramo industrial, o importante é descartar o antigo - o da semana passada - para que o novo tenha espaço, para que a produção não pare, os empregos sejam mantidos, os salários não diminuam e os lucros prosperem sólidos e crescentes: isto, enfim, é o que mais importa para os donos do negócio.

Nestes tempos de conectividade universal, ampla, irrestrita e sem fio, o ser humano está precisando mesmo é se desligar de tudo ao menos por hora e meia, duas ou três vezes ao dia, a fim de recuperar e restaurar sua dimensão... humana.

Pois justo há uma semana, há bastante tempo, portanto, esteve por aqui o senhor Vanderlei Luxemburgo, que já foi até técnico da Seleção brasileira (não, não vamos tratar aqui, agora, de futebol). Ele comanda em campo o Flamengo, à ocasião vice-líder do campeonato nacional, e veio para cumprir a obrigação de vencer o Avaí, então antepenúltimo colocado na mesma competição. Ao final do jogo, o terceiro de trás para frente ganhou do segundo de cima para baixo reproduzindo essas posições na tabela: 3 a 2 para o time de Santa Catarina. Como técnicos precisam dar entrevistas oficiais ao final da partida, Vanderlei passou quase todo o tempo da sua fala reclamando do árbitro da partida e das arbitragens em geral. Disse: "Todos sabem que futebol de qualidade se joga é no Rio, em São Paulo, Minas e Rio Grande. Logo, ali é que estarão os grandes árbitros. Assim, não se pode aceitar que, para apitar os jogos dos times grandes, sejam escalados árbitros de Tocantins ou de Cuiabá, por exemplo." Um caso típico de determinismo geográfico: se você é da periferia, contente-se em babar frente aos bons; pelo resto da vida, faça o que fizer, você será sempre pequeno.

Mas foi além, o Vanderlei: "Aquele gol 'deles' aos três minutos de jogo, num lance irregular, prejudicou completamente o Flamengo, pois num campeonato duro como o nosso é muito difícil virar um marcador." No fundo, ele prega o tal gol de ouro já no tempo normal de jogo: quem marcar primeiro, ganha. Como se o futebol fosse uma espécie de boxe, no qual a luta termina com o nocaute - desde que os Avaís da periferia não se atrevam a cometer a afronta imperdoável, merecidamente punível, de sair marcando.

Arrogância semelhante demonstraram (mais uma vez) os deputados que, na véspera, absolveram dona Jaqueline Roriz, filha de peixe com todo o DNA do pai, filmada ao embolsar dinheiro da corrupção mais deslavada. Como se dissessem: "Nós aqui, unidos em corporação, fazemos o que melhor nos parece. Vocês, povo, vocês, eleitores, contentem-se em serem chamados a cada quatro anos para escolher quais de nós continuarão a fazer, cada vez com maior desenvoltura, o que vimos fazendo."

Ou seja: conscientizemo-nos de vez que nada mais somos do que a periferia dos parlamentos.


*Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 01.08.2011, é um dos seis candidatos à Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras. Crônica publicada na edição de hoje (7.9) do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.

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