5.11.11

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Emanuel Medeiros Vieira
Passio - Anestesia

Amílcar Neves
Casa velha, coisas velhas

Viventes da área
Fotos de Celso Martins



Cidadão assombrado. Por Uelinton Silva

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PASSIO

Por EMANUEL MEDEIROS VIEIRA

(PARA O FÁBIO)

(...) “E de moda em moda, ocupamos o tempo que, senhorio cruel, nos desaloja”. (HP)


A. Aqui, irrompe o pranto


não a redenção.

B. Redigo o diário de bordo

(o mar é interior)

C. Preparo o inelutável ritual:

pronto está o farnel: água no cantil, pão de centeio.

(Folha de papel em branco, lápis, borracha.)

Retenho o cheiro de orvalho – caído numa manhã de infância.

Restaram empáfias, vaidades, simulacros, engenhocas eletrônicas.

D. Paixão vem do latim Passio.

A tradução é sofrimento?

F. O estoque de capital anunciado não me sacia.

G. Nada me sacia?

H. Navegador do Apocalipse?

I. O mar não me alcança – a juventude longe.

J. Luz para o caminho: uma vela só vale acesa.

(Brasília, maio de 2010, e Salvador, novembro de 2011)

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A N E S T E S I A

Por EMANUEL MEDEIROS VIEIRA

Para Chico Alencar, meu amigo



A decisão do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) de deixar o país é fato gravíssimo que se já não espanta, é porque a consciência de cidadania de um país já está profundamente anestesiada, resignada – aceita tudo.

Tal postura seria derivada da permanente impunidade nos três poderes?

É uma espécie de império do “relativismo” moral.

O que houve?

O Rio foi capital do Brasil.

É a falência completa das instituições.

O parlamentar presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, que resultou no indiciamento de mais de 200 pessoas, entre políticos, policiais, bombeiros e outros suspeitos de ligação com grupos criminosos que dominam comunidades, principalmente na zona oeste da capital fluminense.

As investigações resultaram em mais de 500 prisões e inspirou um personagem do filme “Tropa de Elite2”.

Somente no mês de outubro, o serviço de inteligência da Polícia Militar do Rio confirmou pelo menos sete ameaças de morte contra ele

Repito: sete!

Quem conhece o caráter do deputado, afirma que ele não faria isso por marketing, querendo dar um golpe publicitário.

E quem pensa assim, esquece – como observou alguém – que o problema não é particular. É público.

É que muitas pessoas tendem a projetar a sua índole nos outros.

Os homens nascem iguais, mas não são iguais no seu merecimento.

O que está acontecendo é um tapa na cara da sociedade brasileira.

Ou estou romântico demais?

O que a maioria quer mesmo é se “dar bem”, mesmo à base de cotoveladas?

Ela está mais preocupada comas fofocas de “Caras”, com as novelas, com a vida fútil e idiota de muitas celebridades, com os programas de auditório, ou ficar sabendo se uma dupla sertaneja vai se separar ou não.

Então, merecemos que um deputado honrado e combativo (não há muitos) precise deixar o país para não ser morto. Ou seus filhos. Ou sua mulher.

Enquanto isso, esse impoluto senhor chamado Orlando Silva (um dos maiores cantores que o Brasil já teve, para o seu infortúnio, tinha o mesmo nome), na posse do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), no ministério do Esporte, foi aplaudido de pé. Só faltou ser beatificado.

A pergunta que não quer calar: então por que ele teve que sair?

(Salvador, novembro de 2011)

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Casa velha, coisas velhas

Por Amílcar Neves*

Numa noite quente qualquer, o futuro escritor escrevia um dos seus primeiros contos. Sentava-se à mesa de jantar numa sala do casarão talvez já centenário na ocasião. Como ainda era apenas projeto de ficcionista, não tinha espaço próprio na casa velha: era, ainda, um escritor sem escritório. Mas já tinha de seu uma biblioteca. Modesta e bem sortida, uma biblioteca para chamar de sua. Os livros integravam-se ao ambiente, de meio a vasos, enfeites, crianças, fotografias e, claro, móveis e louças. Animais não eram admitidos no interior da residência.

A casa fora construída junto à calçada, como era hábito na época da sua ereção (consulte antes o dicionário, por obséquio, quem pretender esboçar um sorriso malicioso, aqui inconveniente), com porta e janelas debruçando-se sobre os passantes que traziam notícias e levavam informações. Dessas aberturas - ponto estratégico - controlava-se a entrada e saída de gentes, cavalos e veículos que procuravam a praça central da cidade. Para trás, virado para o nascente e para a Ilha, o terreno abrigava dois coqueiros carregados de cachos de butiá, um campinho de futebol, muita árvore e gramado, e terminava nas areias da Baía Sul, que limitavam sua continuação; hoje, é um aterro com avenida por cima que o reprime, com bem menos poesia e encanto do que o mar.

De um lado morava o Jayro Schmidt, do outro havia um palacete sinistro onde teria ocorrido há tempos um crime passional com o emparedamento da jovem e bela dona da casa; atravessando a rua, subia-se o morro quase à frente do casarão para encontrar de súbito o cemitério da cidade, povoado de vetustos cidadãos do lugar.

O casarão: vinha com porão alto e frequentável, com um vasto sótão infestado de cupins, com ruídos noturnos inesperados e suspeitos, com um razoável elenco de fantasmas. Destes, o mais notável leva o nome de Germano, cujo túmulo, perfeitamente identificável, o espera no cemitério próximo. Germano tem por hábito perseguir senhoras idosas dentro da casa, obrigando-as a correr mesmo incapacitadas para a celeridade dos deslocamentos. Alcançando-as, vampiresco, ele as morde nas costas. Nunca se soube com precisão o que acontece depois desse abraço por trás: talvez o terror e o pudor - ou o prazer - impeçam essas senhoras, pobres vítimas, de detalhar os fatos posteriores. Lá, dormia-se com a luz acesa.

As pessoas nascidas ao tempo deste alvorecer para a literatura acima referido estarão em final de carreira se forem jogadores de futebol, terão completado o doutorado caso hajam enveredado pela pesquisa e o magistério, ainda não se terão casado, e muitas viverão com os seus filhos na casa dos pais, desobrigadas de compromissos mais sérios em sua vida particular: não faz tanto tempo assim, portanto. Um escritor escrevia à mão ou com máquina de escrever manual, pois as elétricas, caríssimas, eram para as firmas de sucesso e os computadores, exclusividade de raríssimas empresas de grande porte. A música e o mundo lhe chegavam pelas ondas hertzianas, como proclamavam os locutores, em radinhos de pilha japoneses. O Japão era a China de hoje.

O conto que falava do casarão, da sua vizinhança e do seu morador mais ilustre, o Germano, foi bruscamente interrompido naquela noite quente que já avançava bem porque algo queimou e inchou dolorosamente, de imediato, o pé esquerdo do escritor, obrigando-o a correr para a emergência do hospital, que ficava longe - obra, talvez, dum inseto. Que jamais foi localizado.

*Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, ocupante da cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras. Crônica publicada na edição de 19.10.2011 do jornal Diário Catarinense. Reprodução autorizada pelo autor.


PS

Estimadas amigas, prezados amigos,

Um conjunto de motivos - geralmente justos... - me impediu de manter em dia as minhas correspondências nestas últimas seis a sete semanas. Sei que as dificuldades não serão menores nos próximos três a quatro meses. Tentarei manter em dia ao menos o envio das crônicas [...].

Abraços agradecidos,

Amilcar.
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Um comentário:

GWMachado disse...

Amilcar, Emanuel, Celso, Olsen e Todos os Outros...
Ateh aqui estah tudo MARAVILHOSO: Textos, Ideias e Reflexoes... Alem das belissimas fotos de pica-pau de carapuca (com som de ss), de borboletas e de lindo entardecer no Sambaqui que o Celso agrega a este belo Blog, para nos matar de inveja e de alegria... PARABENS e Abracos aos Diletos Amigos...