20.12.11

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Sessão Viking
DOSE DUPLA
Olsen Jr.

Os emperdenidos de amanhã.
Por que o Natal me dói?



Ilustração: Ylário Belquér

OS EMPEDERNIDOS DE AMANHÃ

Por Olsen Jr.

Havia um par de chinelos na entrada do restaurante, no primeiro degrau da escada que dava para a calçada. Era de uma criança. Os dois pés deveriam estar alinhados no lado direito da porta, não fosse alguém ter chutado o esquerdo, sem o perceber, quando entrou. Era um calçado de material sintético e não destes comuns, de tiras que quase todo o mundo na região usava. Faço aquelas observações mentalmente enquanto cumprimento o garçom, acreditando no inusitado daquela atitude: típica da população interiorana. É o que me ensinaram na década de 1950, quando era guri em Chapecó. Todas às vezes que ia visitar alguém, num gesto instintivo (de uma educação que lhe era anterior) tirava os sapatos e os deixava na porta de entrada.

Entro e vejo o relógio na parede dos fundos marcando 21h50min, estranho penso, alguém ter esquecido aqueles chinelos lá. Quando me aproximo do balcão, quase não dou por elas, duas crianças com menos de nove anos de idade, tendo nas mãos o que parecia ser estas embalagens de isopor onde se leva o que os comensais não conseguiram degustar em uma refeição, ou eles próprios pedem para levar para comer em outra hora.

Ao ver os dois pequenos ali em frente faço logo a advertência de que não deveriam deixar os calçados por aí, que alguém poderia levar, e um deles arregala os olhos e tive a sensação de que uma vida inteira lhe passou pela cabeça antes de certificar-se de que estava falando dos “seus” chinelos e sair em disparada, driblando os garçons entre as mesas, não sem antes agradecer o que viera fazer ali e ser secundado pelo outro garoto que repetiu o gesto, do agradecimento e da desabalada correria ali dentro.

Pergunto para um garçom se eles queriam comida. --- “Não sei” – respondeu... Indago para outro sobre o que “eles” pretendiam. --- “Quem?” Devolve-me a indagação dando a entender que não tinha visto nada... Hei! Interpelo um terceiro, o que as crianças estavam fazendo aqui sozinhas há esta hora? --- “Estava atendendo uma das mesas, não prestei atenção nelas “...

Vou para o balcão, enquanto aguardo, fico imaginando o quanto estamos ensimesmados com nós mesmos. Duas crianças entram num restaurante lotado e ninguém dá por elas. Estavam ali sozinhas, aparentemente sem nenhum responsável... Sou interrompido pelo barman que me pede “vai o de sempre?”, aceno com a cabeça e resolvo fazer mais uma tentativa para saber o que os dois pequenos queriam ali àquela hora... “Estavam vendendo alho” , responde-me o caixa que os havia atendido, erguendo à altura da cabeça, uma bela réstia contendo várias cabeças daquele tempero. Antes que fizesse algum comentário, ele próprio acrescentou (ainda com a amostra do que tinha adquirido nas mãos) “onde já se viu, duas crianças trabalhando a esta hora”... “E nem é o trabalho, mas eram duas crianças”, ratifica “vai ver que os pais estão por aí, em algum bar, esperando elas chegarem com algum dinheiro para beber mais”... Ele, após aquela observação, volta-se para o seu trabalho como se nada tivesse acontecido.

Beber ou não beber, não tem importância, o que deveria importar é o que estamos fazendo com as “nossas” crianças? Estas criaturinhas que tiveram as “suas” infâncias suprimidas, que ficaram “adultas” antes do tempo, vão se tornar os “durões” de amanhã, sem formação, sem sensibilidade para interromperem aquela seqüência hereditária, apenas reproduzindo de maneira ambígua a velha lição, aprendida nas ruas, no infortúnio: diante da vida, sobreviver é o que importa e se há um paraíso aos homens de boa vontade, bem, então vamos descobrir por nós mesmos, embora, claro, ninguém acredite nisso por que: primeiro, negamos-lhes a infância com a nossa caridade; depois, sustentamos-lhes a adolescência com a nossa indiferença; mais tarde, suportamos-lhes a maioridade com o nosso medo. Ontem, lhes demos o que tínhamos de menos: o excedente do nosso egoísmo; hoje, pensamos ouvir-lhes os gritos com o que temos demais: o zelo pelo que acumulamos e amanhã, pretendemos perdoar-lhes devolvendo-lhes a cidadania com o que ainda resta, trocando o nosso desprezo pelo desprezo deles!


A música é esta...



“I Started a Joke”, do Bee Gees…
Lançada em 1968, foi a primeira canção deles a fazer sucesso no Brasil e primeira colocada na lista da Billboard...
Também integrou a trilha sonora da novela “Beto Rockfeller”, de Bráulio Pedroso em 1969...
A primeira novela a romper com os cânones do que até então se fazia na área, a primeira a incluir cenas aéreas, em fazer tomadas de rua, a incluir a gíria, a usar o merchandising...
A insolência do cotidiano cabe aqui, acredito, combina com o texto, o que procuro fazer sempre... (Olsen Jr.)

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POR QUE O NATAL ME DÓI?

(Para Itamar e Marcelina, Luis e Carmem)

Por Olsen Jr.

Em uma tarde destas, logo após as chuvas, estava num mercado aqui na Lagoa, buscava um tipo de requeijão que meus avós faziam. Uma maneira creio, de estreitar minhas saudades com um passado de quando tudo ia bem. Ao meu lado um casal procura algo na mesma gôndola. Não pude deixar de ouvir o comentário que o marido fez para a mulher, “essas músicas de natal são um saco”. Presto atenção e ouço uma versão em português, muito ruim da música “Happy Xmas (War is Over)”, do John Lennon. A letra era mais longa que a melodia, doía mesmo ouvir aquilo.

Tinha uma versão audível com a Simone. Melhor mesmo era ouvir o original com o ex-beatle. Caso raro de uma música de natal que ainda faz sucesso fora da data para a qual foi composta.

Lembro de um mês de dezembro, entre 1966 e 1969, em Chapecó em que ficava em uma sala lendo a obra infantil (17 volumes) de Monteiro Lobato enquanto a minha mãe arrumava a casa e ouvia músicas de natal. De tal maneira isso ficou no inconsciente que, todas às vezes que pego a literatura infantil do Monteiro Lobato já começo a ouvir “...Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai-noel”... As músicas eram brasileiras, muito boas. Versos simples de grande apelo aos sentimentos. Li em algum lugar um ensaio crítico sobre o tema do natal, e as nossas composições sobressaiam-se sobre os outros países, notadamente os Estados Unidos, que era o referente com o indefectível “Jingle Bells”.

Meus avós, Eugênio Harald e Rosa Cabral eram católicos praticantes. Acreditavam em Deus e na unidade familiar. O natal, portanto, era uma data celebrada com todo o ritual que a ocasião exigia. Uma árvore era cortada no campo (já era plantada para essa finalidade), enfeitada com velas, algodão, bolinhas, anjos, estrelas, barba de velho tirada no mato, e embaixo, um presépio com a manjedoura, a criança recém nascida, Maria e José, os reis magos, enfim, tudo lembrando o que deveria ter sido quando o filho de Deus veio ao mundo.

O papai-noel chegava, fazia sua prédica, as orações de praxe, minha tia começava a cantar “Noite Feliz”, quem sabia a letra acompanhava e só mais tarde os presentes eram distribuídos. Depois, uma ceia, também precedida de agradecimentos e uma oração, e a festa que ia até o amanhecer.

No dia seguinte havia um churrasco de ovelha, e apareciam outros membros da família, chegavam para confraternizar. Era um clã numeroso, unido, feliz. Os almoços não tinham fim, o velho gene viking, ou nórdico recessivo, aflorava. Os adultos passavam o dia à mesa, bebendo cerveja, comendo, conversando... Vinha o café... Chegava o jantar e ninguém tinha arredado o pé ainda do lugar. Música contemplando vários gostos, mas imperava o velho nativismo gaúcho.

Bem, como nada dura para sempre, aquela tertúlia familiar também não durou. Estávamos saindo da adolescência quando meus avós morreram... Nunca mais foi a mesma coisa. Tentamos prosseguir com o ritual, mas parece que a essência tinha esvaído... A família foi se distanciando... Depois os meus pais também morreram... Foi então que eu me tornei arredio porque a reunião significava prantear os ausentes, na cabeça de um poeta isso é uma tortura... Olhar aquela mesa na sala, onde várias gerações tinham passado à cabeceira ninguém mais para agradecer o pão em nome de todos, ninguém mais para apaziguar a nossa ansiedade diante da franqueza do bom velhinho que parecia conhecer todas as nossas travessuras, e daquele coração gigante que nos compreendia sempre, desde que prometêssemos não reincidir nos erros... Prometíamos claro, mas sempre fazíamos tudo de novo, e éramos perdoados novamente com a vigilância bondosa e serena do meu avô.

É por isso que o natal me dói... Porque já não posso dizer para aqueles que me amaram, de verdade, que também os amava do meu jeito tímido, como são os poetas!


Imagine




A música poderia ser “Happy XMas”, do John Lennon, mas por razões de direitos autorais (com a gravadora EMI) foi tirada do Google, no Brasil...
Se alguém preferir “matar a saudade” da melodia, a versão brasileira interpretada pela Simone ainda é a melhor, fácil de encontrá-la...
Mas em épocas de “amor”, “fraternidade”, “compartilhamento”, “humanidades”... Lembrar da Utopia também é válido...
Mesmo um tanto cético, nessa época abrimos a guarda, acreditamos, eu também...
Por questões contratuais, os Beatles se separaram (oficialmente) em 1972... Desde 1969 viviam às turras, John Lennon foi o primeiro a gravar um disco independente do quarteto...
A música “Imagine” foi gravada em disco de igual nome, em 1971... Em 1972 só dava “ela” em qualquer lugar que se fosse, o que demonstra, no fundo, que todos gostam de acreditar em uma Utopia... (Olsen Jr.)

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