11.10.10



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L E I T U R A S

Márcio José Rodrigues
e
Emanuel Medeiros Vieira

Pau de Fita de Sambaqui em Jurerê Internacional. Foto: Celso Martins

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ESPECIAL

Fábulas do Sambaqui na Rede (1)

O BURRO E A CENOURA

Por Márcio José Rodrigues*

A vida de Burro não era fácil.

Além do peso da própria carroça, ainda havia a carga, nem sempre pequena.

Não se recusavam fretes de qualquer tipo, morro-acima, morro-abaixo, para qualquer lugar, com qualquer tempo. Em qualquer circunstância, fosse qual fosse o carregamento, levava ainda de lambujem empoleirado lá em cima de tudo, o dono, que indiferente ao esforço do animal, assoviava sempre a mesma modinha, interrompida só para pitar um velho cachimbo, para cuspir ou repreender a besta com um:

- Anda, Burro! - esquentando-lhe o lombo com uma boa relhada.

Pela tardinha, quase escurecendo, depois de um dia trabalhoso, sofrido, chegavam em casa.

Burro enfiava sofregamente o focinho em um balde d’água nem sempre fresca e depois de mal saciada a sede, atacava um feixe de capim, nem sempre verde, em um canto de um tosco telheiro que mal e mal o abrigava da chuva e das rajadas rigorosas do vento sul.

Comia mal, bebia mal, morava mal e trabalhava demais.

O dono executava todos os dias o mesmo ritual.

Fechava-se em sua cabana quentinha, acendia a lamparina de querosene e enchia o copo de cachaça, enquanto assoprava os gravetos no fogão, até que incendiassem as achas de lenha para aquecer água do pirão de farinha de mandioca e para o indispensável lava-pés.

Zé-do - Burro jamais se deitava sem lavar os pés.

As mãos, não era de costume.

E naquela mesmice de todo dia, os dois completavam-se: Zé-do-Burro e Burro-do-Zé e era assim que todos os conheciam.

O carroceiro nem pensava em outra vida.

Tudo parecia tão bem asssentado, tranquilo, os longos passeios em cima da carga, a burrice de Burro.

Mas, aqui na cabeça, lá nele, no burro, estavam acontecendo algumas perturbações.

Um dia, aconteceu!

Burro empacou pela primeira vez.

Por mais relhaços que levasse, pragas e ameaças, Burro recusou-se a puxar a carroça.

Zé-do-Burro, pasmado, não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo.

Fez de tudo.

Primeiro, descarregou a raiva em Burro, depois pensou em livrar-se dele, vendê-lo, mas quando se aprecatou, já ia muito longe a história do burro que empacava.

Uma noite de insônia, quase sem dinheiro, a conta aumentando na venda, Zé-do-Burro começou a perceber, o quanto sua vida dependia daquele animal.

Até sua condição humana estava reduzida a Zé-do-Burro como se o tempo tivesse já confundido a propriedade e o proprietário, o homem e a besta.

Isto precisava ter um fim.

Desfazer-se dele, seria um mau negócio.

Sem ele bem cangado ali na frente, a carroça parecia tão ridícula, tão sem sentido, melancolicamente ajoelhada na areia, com aqueles dois braços arriados, fincados no chão.

Os dias de greve, por estranho que possa parecer, aquelas férias forçadas acabaram por fazer bem aos dois.

Burro aparentava mais descansado, mais amistoso e Zé-do- Burro acabara tendo tempo para pensar em muitas coisas.

Foi de muito pensar, que resolveu aplicar um estratagema malicioso.

Arranjou uma enorme, colorida e cheirosa cenoura e balançou-a na frente do focinho de Burro.

O aroma tentador penetrou pelas ventas e percorreu sinuoso aquele corredor que vai até o cérebro, deixando o animal completamente arrebatado, diabolicamente prisioneiro do encantamento.

Então o dono cangou-o de novo na carroça, e matreiro, prendeu nos arreios um caniço de bambu com a extremidade por cima das orelhas de Burro, de maneira que a cenoura ficasse, irresistível, pendurada ali, tão pertinho da boca, tão na frente dos olhos, cheirando nas ventas.

Burro nunca mais empacou.

Também, jamais provou da cenoura.

Ela permanece ali como uma promessa, balançando na frente de sua cara, e parece tão pertinho, que basta dar o próximo passo para alcançá-la.

Assim, voltaram às ruas aqueles parceiros pitorescos, com uma carroça sobrecarregada de mercadorias e lá em cima, um homem feliz pitando seu cachimbo, cuspindo de vez em quando ou assoviando sua velha modinha, sem nem precisar mais usar o chicote.

Burro persegue pelas ruas, sua inalcançável cenoura, sem mais perceber o peso de sua carga.

Porém, imperceptivelmente, a cabeça, lá nele, continua tendo perturbações.

Está chegando o dia em que descobrirá sua força e acabe, aos coices, quebrando a carroça.

*Márcio José Rodrigues, cirurgião dentista, professor aposentado e escritor, residente na praia do Mar Grosso (Laguna-SC).


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GRAMA MOLHADA


Por Emanuel Medeiros Vieira

PARA O MEU FILHO LUCAS, COM O ENTRANHADO
AMOR DESTE “VELHO URSO”

Cheiro de terra
grama molhada depois da seca
sou mortal
a ruga, a bursite
sim, sou mortal
o tempo – não há mais presente morango vinho
pão fresco o passado nunca sai da retina
sim, eu insuportavelmente finito
esta hora dói – que bom ser mortal!
amarrado no dias, a vida sempre estranha
só memória: o menino
ansiedade que rói, como os bichinhos que virão depois
aquele mar no coração
a infância aqui deitada
desta dor não fui primogênito
(entranhada no coração como a luz de certa manhã)
alegria finita morte soberana
o elefante se afasta para morrer sozinho
mortal
depois nada mais poderá ser compensado –
nenhum soluço, qualquer lágrima o sino da
igreja protestante grupo escolar mãe boletim
a moça de boininha no trapiche da Praia de Fora
foi-se a moça,
foi-se a ilha – só e opaca no meu coração,
o Vento Sul
O Deus Oculto – Oculto? – Revelado
vivo desses pedaços: escrevo
calendário do medo calendário da eternidade,
miserável e tão humanamente finito
ah, os cheiros, a maresia, o cerrado
sou mortal (fechem os olhos devagar)
e um menino sorri para mim.




Um comentário:

Anônimo disse...

Olá meu prezado amigo e Tio. Que belo poema, fiquei emocionado na sua leitura. Este tem que ser publicado em algum livro, para nao ficar perdido nas paginas da internet. Estamos aqui matando as saudades do Lipe e este poema de certa forma tambem serve para ele. Li em voz alta para ele e para a Beth e eles tambem gostaram muito.
Um grande abraço.César