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P Á S C O A
Por Emanuel Medeiros Vieira
Mais: Campeche se mobiliza
contra a destruição (Elaine Tavares) e
Uma viagem a Curitiba (Amílcar Neves)
P Á S C O A
Por Emanuel Medeiros Vieira
Mais: Campeche se mobiliza
contra a destruição (Elaine Tavares) e
Uma viagem a Curitiba (Amílcar Neves)
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Casarão da Ponta erguido em 1854 e restaurado pela Prefeitura. Reabertura hoje (20.4) às 20 horas: Boi de Mamão, Pau de Fita, Ratoeira, exposição de Elias Andrade, Carlos Cunha e Rubens Oestroem etc.
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P Á S C O A
Por EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
Em memória dos meus pais
Como observou Mauro Santayana, o Cristianismo é uma idéia que sai dos limites dos dogmas estabelecidos e ultrapassa o limite das igrejas que o adotam.
Ele está enraizado no coração dos homens.
Um dia, um repórter falou ao cineasta Federico Fellini (1920-1993), sobre o seu filme “Satiricon”:
“Sua obra é pré-cristã, pagã, mas nela percebe-se a presença do Cristianismo.”
E ele respondeu de bate-pronto: “Tenho dois mil anos de Cristianismo.”
Quando digo que ele está “enraizado” no coração humano, não estou afirmando que todos os seres nele acreditam em suas crenças, mas que ele permanece no nosso inconsciente e no nosso imaginário, além de nossas convicções.
A Encarnação em Cristo, para muitos pensadores, é a assunção da grandeza do homem enquanto homem.
Ele sobrevive, porque é o sumo da consciência humana, o compromisso da vida consigo mesma.
O jovem Cristo, na interpretação de muitos humanistas, foi um dos muitos judeus daquele tempo que, inquietos com a situação política de seu povo, procuraram uma saída para a liberdade.
A Palestina estava sob o domínio do Império Romano e era tempo de Tibério, representado ali por Pilatos.
Os homens têm necessidade de transcendência – somos pós e voltaremos ao pó –, e necessitam de algo que ultrapasse as misérias do cotidiano.
Alienação? Não creio. Mas sim, a busca de inserção numa vida mais plena, generosa, menos individualista, que respeite o próximo, e que tenha sede de Justiça.
A Ele se atribui origem divina.
“Era necessária a reafirmação da antiga aliança, com a Encarnação, a renovação da promessa mediante um homem de carne e osso, enviado do Absoluto para pregar o amor – ou seja, a solidariedade essencial entre os homens como pressuposto de sua salvação.”
Cristo era um homem, como lembra Santayana, capaz de amar, de se irritar, como no episódio dos mercadores do templo.
Segundo o articulista, muitas igrejas tentam reduzir a condição humana de Cristo, ao exaltar a idéia de que Ele é o Unigênito de Deus.
Mas, na visão de alguns teólogos, Ele é tão maior e mais necessário quando se reconhece a sua condição humana.
Não, não se está reduzindo a sua condição de Absoluto, mas buscando que se aproxime ainda mais do coração humano.
Como alguém salientou, Ele é tanto mais o filho de Deus quanto é irmão e amigo de todos os homens.
“O irmão e amigo a que recorremos nos rincões de nossa alma, onde se recolhe o sofrimento, porque n’Ele – que é parte de nós mesmos – podemos confessar as humilhações sofridas, o nosso desespero, nossa desesperança do futuro, e contar com o seu consolo e perdão.”
Sim: consolo e perdão.
E em quantas situações da vida, não precisamos de consolo?
E em quantas, não pedimos para ser perdoados?
“Aquele que não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não vos dará também com Ele todas as coisas?” (Rm, 8/32).
Sim, a Igreja cometeu erros desde Constantino.
Mas, hoje, quando celebramos a Páscoa (Ressurreição), não preciso falar sobre isso.
E como salientou o jornalista citado, neste momento também não quero lembrar que dirigentes de outras confissões religiosas que se dizem cristãs explorem impiedosamente a credulidade pública, arrecadando bilhões e construindo vastos impérios econômicos.
É Páscoa.
Repito: é Páscoa.
Que o sentimento de Ressurreição permanecesse em nossos corações: era a minha aspiração que eu desejava.
(Um anseio que vai do menino ao homem sessentão. E que seguirá comigo.)
Não tenho ilusões: os tempos são ásperos, de exploração, de matança, do império do tráfico, um mundo no qual o homem vale pelo número do seu cartão de crédito.
Quer dizer: vale pelo que tem e não pelo que é.
Tempo de desagregação de um valor maior (a família).
Mas poderemos ser maiores que isso.
Nós podemos contar com Cristo em qualquer capelinha de estrada, em todos os corações que sofrem.
Uma viagem a Curitiba, por mais despretensiosa que seja, sempre renderá uma penca de oportunidades para que se observe uma série de características da cidade que nem sempre se encontram em outras capitais no Brasil. Uma simples viagem de fim de semana pela capital do Paraná dará ao observador minimamente atento e interessado um panorama do que pode ser feito pela humanização e pela Cultura das cidade brasileiras. Se o viajante for responsável por aspectos da vida urbana em sua terra, terá em Curitiba um curso intensivo e gracioso de ideias ousadas e realizações brilhantes.
O Mercado Municipal de Curitiba está em obras. Em reforma, sim, porém funcionando plenamente. Novinho, ainda uma criança, foi inaugurado em 1958 e passa por melhorias nos boxes e no espaço físico, inclusive com ampliação do mezanino onde funcionam os frequentadíssimos bares e restaurantes da casa. Encontra-se de tudo no Mercado Público, até mesmo sapatos: há ali duas sapatarias, uma para venda de calçados, ocupando cinco boxes, e, a outra, uma pequena oficina de reparos de tacões e meias-solas. O principal do seu leque de serviços, no entanto, é o suprimento de produtos alimentícios de alta qualidade, muitos dos quais difíceis de serem encontrados nas prateleiras padronizadas dos supermercados.
Para o visitante que não aprecia nem comer nem comidas, a cidade oferece a Linha Turismo, um ônibus de dois andares, o superior sendo conversível, que parte de meia em meia hora da Praça Tiradentes, em frente à Catedral, de terças a domingos. A Linha Turismo é administrada pela URBS, uma empresa de economia mista do município. E o que fazem tais ônibus de dois andares? Humilham os viajantes. Eles dão uma longa amostra, de 45 quilômetros de percurso e duas horas e meia de duração, do que é Curitiba, uma cidade de poucos atrativos naturais (nem mar eles têm!) construída e preservada no capricho pela mão do homem. O percurso tem 24 pontos de parada, nos quais os visitantes podem descer e explorar as cercanias, retomando o trajeto em um próximo veículo. Esses pontos incluem desde setores e prédios históricos da cidade até museus, teatros, parques e bosques. Por exemplo: Museu Ferroviário, Museu Oscar Niemeyer (o deslumbrante Museu do Olho) e os Memoriais Árabe, Polonês e Ucraniano; Teatro Paiol, Teatro Guaíra e Ópera de Arame; Jardim Botânico, Passeio Público, Bosque do Papa, Bosque Alemão, Universidade Livre do Meio Ambiente, Pedreira Paulo Leminski, Parque São Lourenço, Parque Tanguá, Parque Tingüi e Parque Barigui.
Uma humilhação atrás da outra, pois está tudo localizado dentro do perímetro urbano da cidade, inclusive em áreas nobres que a especulação imobiliária adoraria devastar para erguer torres de cimento. O Bosque do Papa, só para citar um caso, situa-se ao lado do Centro Cívico, a sede dos três poderes estaduais, nenhum dos quais fica mudando de endereço a cada político que assume o executivo estadual ou municipal.
Ou seja: qualquer governante que deveria administrar (mas, de hábito, pouco o faz) um estado ou uma cidade, uma secretaria estadual ou municipal, um departamento público qualquer, terá logo ali, bem pertinho, 300 quilômetros ao Norte e mil metros acima, uma especialização em criatividade e soluções refinadas, de altíssimos níveis de qualidade humana e cultural (o que é redundante, claro, mas precisa ser sublinhado para que as pessoas percebam que não se logra desenvolvimento humano divorciado de promoção cultural).
De repente, desde há dois anos, a praia do Campeche se encheu de gente sarada, adepta do frescobol. Mas não aquele jogo delicioso, que se joga relaxado, brincando. Não! É um frescobol de força, vitrine de bíceps, bundas duras, corpos bronzeados. Gente muito “bem nascida”, criada a Toddy. Nada contra que eles estejam no Campeche, afinal, a praia é pública. Mas, o tal do “point”, chamado de “riozinho” foi uma invenção, destas que se cria a cada verão. A mídia encontrou ali um filão, um lugar privado que se dispunha a ganhar dinheiro dos graúdos da cidade, e decidiu apostar na ideia. Então, de velhas e conhecidas bocas alugadas começaram as loas ao lugar. “Melhor pico do verão”, “espaço de natureza exuberante”, “lugar propício para as crianças”. E assim foi, dia após dia, na RBS TV, e nos demais veículos do mesmo grupo, praticamente monopólico na cidade.
Estava em andamento uma agressiva campanha de ocupação dos espaços do Campeche. Este era um bairro que ainda resistia aos ataques dos grandes empreendimentos, porque ancorado num forte movimento popular e comunitário. Mas as terras do sul estavam sob o olhar guloso de empreiteiras e grandes especuladores. A campanha midiática deu resultados. Os granfinos vieram para o “paraíso”, a praia, e, pouco a pouco começaram a pipocar os empreendimentos de luxo, com toda a sorte de irregularidades e desrespeito ao modo de vida escolhido pela comunidade.
Com a ascensão do moderno espaço do “riozinho”, veio também a guerra contra o tradicional, apontado como velho, ultrapassado, e até ilegal. As “autoridades ambientais” passaram a questionar a presença do Bar do Chico na praia, e usavam como argumento o fato de ele estar em cima das dunas, portanto, “destruindo a natureza”. Mas, enquanto se travava na Justiça a batalha para destruir o bar que era espaço comunitário, patrimônio cultural, as grandes construções começaram a ser erguidas, muitas delas também sobre as dunas, como é o caso da casa do tenista Guga. Só que estas não eram questionadas.
Assim, a comunidade passou a se mobilizar para defender o bar, e muitas manifestações foram feitas. Aconteciam reuniões, encontros, mobilizações. O bairro fervia na tentativa de barrar o absurdo. Afinal, o bar praticamente estava incorporado à natureza desde os anos 80 e era parte da vida das gentes, nas festas populares como o carnaval e nas religiosas, como a Páscoa e o Natal. Pois, o Bar do Chico foi o bode na sala. Enquanto as forças vivas do bairro andavam as voltas com documentos e reuniões, a mídia incensava as belezas do lugar e os empreiteiros erguiam seus condomínios de massa.
Numa triste manhã chuvosa as máquinas derrubaram o Bar do Chico e, aturdida, a comunidade viu que, bem ali, em frente ao bar, estava um condomínio gigante pronto para privatizar as dunas com um “belo” deck, onde antes estava o tradicional espaço comunitário. E mais, por toda a parte surgiam novos outros condomínios, bate-estacas, rebaixamento de lençol freático, ilegalidades. Tudo sob o beneplácito da lei. Ou seja, a questão do bar do Chico não era sua ilegalidade, já que tem dezenas de construções ilegais na praia. Era uma derrubada política, uma rasteira na história da comunidade.
O bairro cresceu vertiginosamente sem que crescesse com ele a estrutura para manter a qualidade da vida, tão típica do lugar. Sem mobilidade, sem rede de esgoto, a vida começou a deteriorar. Pessoas inescrupulosas e sem qualquer compromisso com a natureza passaram a também cometer sua fatia de ilegalidade e, com as obras da Casan para a implantação do esgoto, ligaram seus esgotos a rede pluvial, fazendo com que os dejetos começassem a correr para o mar e para os rios que ainda vivem no Campeche.
Mas todas estas coisas não aconteceram sem luta. Desde os anos 80 que a comunidade se organiza e mantém uma série de movimentos na defesa do seu modo de vida. O lixo, o esgoto, a cultura, o Plano Diretor, em todas as áreas tem gente se mexendo. A Associação dos Moradores do Campeche, com a ação vigilante de seu presidente, Ataíde Silva, tem feito um trabalho gigantesco de levantamento de dados, de fotografia, de fiscalização. Cada denúncia de esgoto sendo lançado na rede pluvial é investigada e canos são lacrados quase que diariamente. Há um batalhão de pessoas atentas, discutindo, propondo, e lutando. Este é um trabalho cotidiano. Há mais de cinco anos, os representantes destas entidades se reúnem, religiosamente, todas as segundas-feiras, no Clube Catalina. Ninguém nunca esmoreceu na batalha pela vida digna, por um lugar preservado e de qualidade.
Este ano, de novo, promovido pelo mesmo jornalista que criou o “point” do riozinho, o lugar foi palco de um show internacional, dentro da lógica dos mega-shows. A comunidade reagiu, como sempre fez quando a vida por ali é ameaçada. Ainda assim coisas “mágicas” aconteceram como, por exemplo, a empresa conseguir licenças ambientais em tempo recorde. Na verdade a magia foi feita pelo vice-prefeito que liberou o show e assumiu todos os riscos. Ou seja, seguindo o padrão de “para os ricos, tudo”, a prefeitura afrontou os movimentos populares e abriu as dunas para a destruição. Tripudiando não fez um, mas dois shows.
Pois agora, como se a comunidade do Campeche fosse formada por um bando de imbecis e incapazes, a mesma criatura midiática inventou de comandar um projeto de “salvamento do riozinho” que, segundo ele, estaria correndo o risco de estar poluído. Um evento, apenas, sem qualquer compromisso com a luta de décadas. Em primeiro lugar, aquele não é um “riozinho” sem identidade. É o Rio do Noca, que tem uma história de ligação visceral com a gente deste lugar como bem define o morador do bairro, Adir Plácido Vigânigo: “... O Rio do Noca como foi denominado pelos moradores nativos do Campeche há quase um século, precisa ser cuidado com muito respeito. Pois nele, muitos pescadores aprenderam a remar nas canoas de remo de voga, muitos aprenderam a nadar (entre elas eu), muitas mulheres lavaram roupa, muitos campistas banharam seus filhos, beberam sua água, muitos agricultores deram de beber a seus animais. Nosso Rio do Noca tem história. Não essa história que estão tentando contar, a da faixa de areia que é atravessada pelo Rio e chega ao Mar. O Rio do Noca na praia do Campeche define o limite da pesca da Tainha entre a rede do Seu Chico (Francisco Daniel) e a rede do seu Aparício e Getúlio (antes rede do seu Deca). Ele sempre serviu de referência de localização para os moradores. Quem conhece nossa História não esquece das frases: "acima ou abaixo do Rio", "na boca do rio", "até o rio, etc..”.
Este depoimento repleto de paixão e conhecimento é decisivo para mostrar que nesta comunidade ninguém vai se arvorar em dono do rio, muito menos o nomeará como querem os empreiteiros, assim, de forma impessoal, como se fosse um adorno, um produto, pronto para ser comprado ou vendido. O rio que corre para o mar ali na praia do Campeche sempre foi defendido e cuidado pelo povo do bairro, pelo menos o povo que realmente se importa com a vida, com a história e que sabe que tudo aquilo que se faz a terra, faz-se ao filho da terra. Não há como separar a natureza do homem.
Janice Tirelli, do Núcleo Distrital do Campeche, acerta no ponto quando diz: “Vale lembrar que quem estragou o Rio do Noca foi quem fez dele o seu instrumento de ganância sem pensar nas consequências. Para o capital imobiliário é importante um movimento de revalorização da área do rio, porque ele carrega todos os negócios sustentados na sua propaganda que podem cair ante a concorrência com a nova imagem de poluição e fedor na praia”.
Contam os surfistas locais que, entre eles, desde há anos chamam o rio do Noca de “riozinho”, mas segundo eles, não tem o caráter depreciativo ou diminutivo. É apenas carinho. Coisa que não se pode dizer dos que promovem o pico na mídia local.
A comunidade está atenta. As pessoas que estão em luta há décadas pela qualidade de vida no Campeche nunca deixaram um dia sequer de denunciar, fiscalizar e propor saídas para o processo de destruição que o progresso capitalista traz. Por isso, essa campanha que figuras estranhas ao bairro querem fazer de “SOS Riozinho” não encontra qualquer sentido. No Campeche não há nenhum “riozinho”. Há cursos de água com nome e sobrenome, ligados a história deste lugar e que são defendidos com unhas e dentes por aqueles que ali vivem e amam. No Campeche trava-se uma feroz batalha contra os que insistem em destruir e transformar o lugar em espaços desumanos e impessoais.
E justamente porque a batalha é renhida que ninguém despreza novos integrantes que queiram fazer luta conjunta, como explica Janice Tirelli: “Os que querem uma boa causa, que se integrem a essa que tem sua raiz na comunidade, que tem o argumento forte de quem conhece o lugar porque é parte de sua historia – não apenas os nativos, mas todos os que apostaram no espaço coletivo aqui no Campeche. Não nos peçam apoio. Ao contrário, entrem com o seu apoio na defesa do Plano Diretor Comunitário que, se aprovado, evitará que o estrago seja maior”.
É isso. Não passarão!
Ele está enraizado no coração dos homens.
Um dia, um repórter falou ao cineasta Federico Fellini (1920-1993), sobre o seu filme “Satiricon”:
“Sua obra é pré-cristã, pagã, mas nela percebe-se a presença do Cristianismo.”
E ele respondeu de bate-pronto: “Tenho dois mil anos de Cristianismo.”
Quando digo que ele está “enraizado” no coração humano, não estou afirmando que todos os seres nele acreditam em suas crenças, mas que ele permanece no nosso inconsciente e no nosso imaginário, além de nossas convicções.
A Encarnação em Cristo, para muitos pensadores, é a assunção da grandeza do homem enquanto homem.
Ele sobrevive, porque é o sumo da consciência humana, o compromisso da vida consigo mesma.
O jovem Cristo, na interpretação de muitos humanistas, foi um dos muitos judeus daquele tempo que, inquietos com a situação política de seu povo, procuraram uma saída para a liberdade.
A Palestina estava sob o domínio do Império Romano e era tempo de Tibério, representado ali por Pilatos.
Os homens têm necessidade de transcendência – somos pós e voltaremos ao pó –, e necessitam de algo que ultrapasse as misérias do cotidiano.
Alienação? Não creio. Mas sim, a busca de inserção numa vida mais plena, generosa, menos individualista, que respeite o próximo, e que tenha sede de Justiça.
A Ele se atribui origem divina.
“Era necessária a reafirmação da antiga aliança, com a Encarnação, a renovação da promessa mediante um homem de carne e osso, enviado do Absoluto para pregar o amor – ou seja, a solidariedade essencial entre os homens como pressuposto de sua salvação.”
Cristo era um homem, como lembra Santayana, capaz de amar, de se irritar, como no episódio dos mercadores do templo.
Segundo o articulista, muitas igrejas tentam reduzir a condição humana de Cristo, ao exaltar a idéia de que Ele é o Unigênito de Deus.
Mas, na visão de alguns teólogos, Ele é tão maior e mais necessário quando se reconhece a sua condição humana.
Não, não se está reduzindo a sua condição de Absoluto, mas buscando que se aproxime ainda mais do coração humano.
Como alguém salientou, Ele é tanto mais o filho de Deus quanto é irmão e amigo de todos os homens.
“O irmão e amigo a que recorremos nos rincões de nossa alma, onde se recolhe o sofrimento, porque n’Ele – que é parte de nós mesmos – podemos confessar as humilhações sofridas, o nosso desespero, nossa desesperança do futuro, e contar com o seu consolo e perdão.”
Sim: consolo e perdão.
E em quantas situações da vida, não precisamos de consolo?
E em quantas, não pedimos para ser perdoados?
“Aquele que não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não vos dará também com Ele todas as coisas?” (Rm, 8/32).
Sim, a Igreja cometeu erros desde Constantino.
Mas, hoje, quando celebramos a Páscoa (Ressurreição), não preciso falar sobre isso.
E como salientou o jornalista citado, neste momento também não quero lembrar que dirigentes de outras confissões religiosas que se dizem cristãs explorem impiedosamente a credulidade pública, arrecadando bilhões e construindo vastos impérios econômicos.
É Páscoa.
Repito: é Páscoa.
Que o sentimento de Ressurreição permanecesse em nossos corações: era a minha aspiração que eu desejava.
(Um anseio que vai do menino ao homem sessentão. E que seguirá comigo.)
Não tenho ilusões: os tempos são ásperos, de exploração, de matança, do império do tráfico, um mundo no qual o homem vale pelo número do seu cartão de crédito.
Quer dizer: vale pelo que tem e não pelo que é.
Tempo de desagregação de um valor maior (a família).
Mas poderemos ser maiores que isso.
Nós podemos contar com Cristo em qualquer capelinha de estrada, em todos os corações que sofrem.
(Dedico este texto – além de Alfredo e Nenê, meus pais – a todos os amigos, ex-amigos, aos que padecem de enfermidades físicas e mentais, aos que aqui permanecem e àqueles que já partiram: não estão mais onde estamos, mas estarão sempre onde estivermos).
(Salvador, Semana da Páscoa – abril de 2011)
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Uma viagem a Curitiba
Por Amílcar Neves*
Uma viagem a Curitiba
Por Amílcar Neves*
Uma viagem a Curitiba, por mais despretensiosa que seja, sempre renderá uma penca de oportunidades para que se observe uma série de características da cidade que nem sempre se encontram em outras capitais no Brasil. Uma simples viagem de fim de semana pela capital do Paraná dará ao observador minimamente atento e interessado um panorama do que pode ser feito pela humanização e pela Cultura das cidade brasileiras. Se o viajante for responsável por aspectos da vida urbana em sua terra, terá em Curitiba um curso intensivo e gracioso de ideias ousadas e realizações brilhantes.
O Mercado Municipal de Curitiba está em obras. Em reforma, sim, porém funcionando plenamente. Novinho, ainda uma criança, foi inaugurado em 1958 e passa por melhorias nos boxes e no espaço físico, inclusive com ampliação do mezanino onde funcionam os frequentadíssimos bares e restaurantes da casa. Encontra-se de tudo no Mercado Público, até mesmo sapatos: há ali duas sapatarias, uma para venda de calçados, ocupando cinco boxes, e, a outra, uma pequena oficina de reparos de tacões e meias-solas. O principal do seu leque de serviços, no entanto, é o suprimento de produtos alimentícios de alta qualidade, muitos dos quais difíceis de serem encontrados nas prateleiras padronizadas dos supermercados.
Para o visitante que não aprecia nem comer nem comidas, a cidade oferece a Linha Turismo, um ônibus de dois andares, o superior sendo conversível, que parte de meia em meia hora da Praça Tiradentes, em frente à Catedral, de terças a domingos. A Linha Turismo é administrada pela URBS, uma empresa de economia mista do município. E o que fazem tais ônibus de dois andares? Humilham os viajantes. Eles dão uma longa amostra, de 45 quilômetros de percurso e duas horas e meia de duração, do que é Curitiba, uma cidade de poucos atrativos naturais (nem mar eles têm!) construída e preservada no capricho pela mão do homem. O percurso tem 24 pontos de parada, nos quais os visitantes podem descer e explorar as cercanias, retomando o trajeto em um próximo veículo. Esses pontos incluem desde setores e prédios históricos da cidade até museus, teatros, parques e bosques. Por exemplo: Museu Ferroviário, Museu Oscar Niemeyer (o deslumbrante Museu do Olho) e os Memoriais Árabe, Polonês e Ucraniano; Teatro Paiol, Teatro Guaíra e Ópera de Arame; Jardim Botânico, Passeio Público, Bosque do Papa, Bosque Alemão, Universidade Livre do Meio Ambiente, Pedreira Paulo Leminski, Parque São Lourenço, Parque Tanguá, Parque Tingüi e Parque Barigui.
Uma humilhação atrás da outra, pois está tudo localizado dentro do perímetro urbano da cidade, inclusive em áreas nobres que a especulação imobiliária adoraria devastar para erguer torres de cimento. O Bosque do Papa, só para citar um caso, situa-se ao lado do Centro Cívico, a sede dos três poderes estaduais, nenhum dos quais fica mudando de endereço a cada político que assume o executivo estadual ou municipal.
Ou seja: qualquer governante que deveria administrar (mas, de hábito, pouco o faz) um estado ou uma cidade, uma secretaria estadual ou municipal, um departamento público qualquer, terá logo ali, bem pertinho, 300 quilômetros ao Norte e mil metros acima, uma especialização em criatividade e soluções refinadas, de altíssimos níveis de qualidade humana e cultural (o que é redundante, claro, mas precisa ser sublinhado para que as pessoas percebam que não se logra desenvolvimento humano divorciado de promoção cultural).
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Está próximo: Lançamento do livro Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo (teatro), de Amilcar Neves, será no dia 29 de abril, sexta-feira, às 20h30, na Barca dos Livros, em frente aos trapiches da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Gostaria muito de poder abraçar vocês lá.*Amílcar Neves é escritor. Crônica publicada na edição de hoje (20.4)
do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.
do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.
Campeche se mobiliza
contra a destruição
Por Elaine Tavares - jornalista
contra a destruição
Por Elaine Tavares - jornalista
De repente, desde há dois anos, a praia do Campeche se encheu de gente sarada, adepta do frescobol. Mas não aquele jogo delicioso, que se joga relaxado, brincando. Não! É um frescobol de força, vitrine de bíceps, bundas duras, corpos bronzeados. Gente muito “bem nascida”, criada a Toddy. Nada contra que eles estejam no Campeche, afinal, a praia é pública. Mas, o tal do “point”, chamado de “riozinho” foi uma invenção, destas que se cria a cada verão. A mídia encontrou ali um filão, um lugar privado que se dispunha a ganhar dinheiro dos graúdos da cidade, e decidiu apostar na ideia. Então, de velhas e conhecidas bocas alugadas começaram as loas ao lugar. “Melhor pico do verão”, “espaço de natureza exuberante”, “lugar propício para as crianças”. E assim foi, dia após dia, na RBS TV, e nos demais veículos do mesmo grupo, praticamente monopólico na cidade.
Estava em andamento uma agressiva campanha de ocupação dos espaços do Campeche. Este era um bairro que ainda resistia aos ataques dos grandes empreendimentos, porque ancorado num forte movimento popular e comunitário. Mas as terras do sul estavam sob o olhar guloso de empreiteiras e grandes especuladores. A campanha midiática deu resultados. Os granfinos vieram para o “paraíso”, a praia, e, pouco a pouco começaram a pipocar os empreendimentos de luxo, com toda a sorte de irregularidades e desrespeito ao modo de vida escolhido pela comunidade.
Com a ascensão do moderno espaço do “riozinho”, veio também a guerra contra o tradicional, apontado como velho, ultrapassado, e até ilegal. As “autoridades ambientais” passaram a questionar a presença do Bar do Chico na praia, e usavam como argumento o fato de ele estar em cima das dunas, portanto, “destruindo a natureza”. Mas, enquanto se travava na Justiça a batalha para destruir o bar que era espaço comunitário, patrimônio cultural, as grandes construções começaram a ser erguidas, muitas delas também sobre as dunas, como é o caso da casa do tenista Guga. Só que estas não eram questionadas.
Assim, a comunidade passou a se mobilizar para defender o bar, e muitas manifestações foram feitas. Aconteciam reuniões, encontros, mobilizações. O bairro fervia na tentativa de barrar o absurdo. Afinal, o bar praticamente estava incorporado à natureza desde os anos 80 e era parte da vida das gentes, nas festas populares como o carnaval e nas religiosas, como a Páscoa e o Natal. Pois, o Bar do Chico foi o bode na sala. Enquanto as forças vivas do bairro andavam as voltas com documentos e reuniões, a mídia incensava as belezas do lugar e os empreiteiros erguiam seus condomínios de massa.
Numa triste manhã chuvosa as máquinas derrubaram o Bar do Chico e, aturdida, a comunidade viu que, bem ali, em frente ao bar, estava um condomínio gigante pronto para privatizar as dunas com um “belo” deck, onde antes estava o tradicional espaço comunitário. E mais, por toda a parte surgiam novos outros condomínios, bate-estacas, rebaixamento de lençol freático, ilegalidades. Tudo sob o beneplácito da lei. Ou seja, a questão do bar do Chico não era sua ilegalidade, já que tem dezenas de construções ilegais na praia. Era uma derrubada política, uma rasteira na história da comunidade.
O bairro cresceu vertiginosamente sem que crescesse com ele a estrutura para manter a qualidade da vida, tão típica do lugar. Sem mobilidade, sem rede de esgoto, a vida começou a deteriorar. Pessoas inescrupulosas e sem qualquer compromisso com a natureza passaram a também cometer sua fatia de ilegalidade e, com as obras da Casan para a implantação do esgoto, ligaram seus esgotos a rede pluvial, fazendo com que os dejetos começassem a correr para o mar e para os rios que ainda vivem no Campeche.
Mas todas estas coisas não aconteceram sem luta. Desde os anos 80 que a comunidade se organiza e mantém uma série de movimentos na defesa do seu modo de vida. O lixo, o esgoto, a cultura, o Plano Diretor, em todas as áreas tem gente se mexendo. A Associação dos Moradores do Campeche, com a ação vigilante de seu presidente, Ataíde Silva, tem feito um trabalho gigantesco de levantamento de dados, de fotografia, de fiscalização. Cada denúncia de esgoto sendo lançado na rede pluvial é investigada e canos são lacrados quase que diariamente. Há um batalhão de pessoas atentas, discutindo, propondo, e lutando. Este é um trabalho cotidiano. Há mais de cinco anos, os representantes destas entidades se reúnem, religiosamente, todas as segundas-feiras, no Clube Catalina. Ninguém nunca esmoreceu na batalha pela vida digna, por um lugar preservado e de qualidade.
Este ano, de novo, promovido pelo mesmo jornalista que criou o “point” do riozinho, o lugar foi palco de um show internacional, dentro da lógica dos mega-shows. A comunidade reagiu, como sempre fez quando a vida por ali é ameaçada. Ainda assim coisas “mágicas” aconteceram como, por exemplo, a empresa conseguir licenças ambientais em tempo recorde. Na verdade a magia foi feita pelo vice-prefeito que liberou o show e assumiu todos os riscos. Ou seja, seguindo o padrão de “para os ricos, tudo”, a prefeitura afrontou os movimentos populares e abriu as dunas para a destruição. Tripudiando não fez um, mas dois shows.
O Rio do Noca tem história
Pois agora, como se a comunidade do Campeche fosse formada por um bando de imbecis e incapazes, a mesma criatura midiática inventou de comandar um projeto de “salvamento do riozinho” que, segundo ele, estaria correndo o risco de estar poluído. Um evento, apenas, sem qualquer compromisso com a luta de décadas. Em primeiro lugar, aquele não é um “riozinho” sem identidade. É o Rio do Noca, que tem uma história de ligação visceral com a gente deste lugar como bem define o morador do bairro, Adir Plácido Vigânigo: “... O Rio do Noca como foi denominado pelos moradores nativos do Campeche há quase um século, precisa ser cuidado com muito respeito. Pois nele, muitos pescadores aprenderam a remar nas canoas de remo de voga, muitos aprenderam a nadar (entre elas eu), muitas mulheres lavaram roupa, muitos campistas banharam seus filhos, beberam sua água, muitos agricultores deram de beber a seus animais. Nosso Rio do Noca tem história. Não essa história que estão tentando contar, a da faixa de areia que é atravessada pelo Rio e chega ao Mar. O Rio do Noca na praia do Campeche define o limite da pesca da Tainha entre a rede do Seu Chico (Francisco Daniel) e a rede do seu Aparício e Getúlio (antes rede do seu Deca). Ele sempre serviu de referência de localização para os moradores. Quem conhece nossa História não esquece das frases: "acima ou abaixo do Rio", "na boca do rio", "até o rio, etc..”.
Este depoimento repleto de paixão e conhecimento é decisivo para mostrar que nesta comunidade ninguém vai se arvorar em dono do rio, muito menos o nomeará como querem os empreiteiros, assim, de forma impessoal, como se fosse um adorno, um produto, pronto para ser comprado ou vendido. O rio que corre para o mar ali na praia do Campeche sempre foi defendido e cuidado pelo povo do bairro, pelo menos o povo que realmente se importa com a vida, com a história e que sabe que tudo aquilo que se faz a terra, faz-se ao filho da terra. Não há como separar a natureza do homem.
Janice Tirelli, do Núcleo Distrital do Campeche, acerta no ponto quando diz: “Vale lembrar que quem estragou o Rio do Noca foi quem fez dele o seu instrumento de ganância sem pensar nas consequências. Para o capital imobiliário é importante um movimento de revalorização da área do rio, porque ele carrega todos os negócios sustentados na sua propaganda que podem cair ante a concorrência com a nova imagem de poluição e fedor na praia”.
Contam os surfistas locais que, entre eles, desde há anos chamam o rio do Noca de “riozinho”, mas segundo eles, não tem o caráter depreciativo ou diminutivo. É apenas carinho. Coisa que não se pode dizer dos que promovem o pico na mídia local.
A comunidade está atenta. As pessoas que estão em luta há décadas pela qualidade de vida no Campeche nunca deixaram um dia sequer de denunciar, fiscalizar e propor saídas para o processo de destruição que o progresso capitalista traz. Por isso, essa campanha que figuras estranhas ao bairro querem fazer de “SOS Riozinho” não encontra qualquer sentido. No Campeche não há nenhum “riozinho”. Há cursos de água com nome e sobrenome, ligados a história deste lugar e que são defendidos com unhas e dentes por aqueles que ali vivem e amam. No Campeche trava-se uma feroz batalha contra os que insistem em destruir e transformar o lugar em espaços desumanos e impessoais.
E justamente porque a batalha é renhida que ninguém despreza novos integrantes que queiram fazer luta conjunta, como explica Janice Tirelli: “Os que querem uma boa causa, que se integrem a essa que tem sua raiz na comunidade, que tem o argumento forte de quem conhece o lugar porque é parte de sua historia – não apenas os nativos, mas todos os que apostaram no espaço coletivo aqui no Campeche. Não nos peçam apoio. Ao contrário, entrem com o seu apoio na defesa do Plano Diretor Comunitário que, se aprovado, evitará que o estrago seja maior”.
É isso. Não passarão!
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