3.8.11


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Gigante adormecido no Tabuleiro. Foto: Celso Martins

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Houve protestos e insatisfação

Por Amílcar Neves*

O povo ficou indignado, revoltado mesmo. No caso, o pessoal que mora na Servidão Santa Maria Magdalena do Cordeiro Santíssimo de Deus, Serva Humilíssima de Jesus, nome absurdamente extenso que Omero Luíz dos Anjos Santo, professor de Português lá residente, sugeriu, só para implicar com o vizinho de cima, cuja devoção religiosa faz questão de tornar patente com volumosa e frequente sonoridade doméstica, que fosse abreviado para Servidão Agnus Dei. Dita via pública localiza-se no subdistrito de Trindade, que até o último dia do ano de 1943 foi o distrito de Santíssima Trindade.

O fato é que muita gente se sentiu arbitrariamente alijada da matéria sobre a viela que saiu semana passada no jornal. Quando o repórter lá esteve, todo mundo colaborou, deu seu recado, contou suas histórias, lembrou casos do passado, reviveu personagens marcantes do pedaço, trouxe objetos e lembranças, posou para fotos fora e dentro de suas casas e das casas dos outros, fez tudo, enfim, para que o assunto fosse veiculado em todas as suas nuanças e sutilezas. Mas não. Ao sair o artigo, é aquela, digamos assim, broxura total. Uma enorme decepção com "esses exploradores que usam nossa realidade para, manipulando-a vergonhosamente, ganhar o seu rico salário no fim do mês." "Falta de respeito" foi a tônica dos protestos à medida em que, ao longo dos dias, as pessoas iam tomando conhecimento da reportagem.

Um dos mais inconformados é o Zé Bode, apelido de Carlos Heinrich Bodenmüller da Silva, fruto de uma escaldante noite de amor entre uma frágil alemãzinha do Centro e um robusto negrão do subdistrito, dono de um boteco eternamente decadente ali na servidão (o Bode mora num cômodo pouco arejado aos fundos do negócio). Esbraveja: "Só porque eu uso a banca de jogo do bicho camuflada no bar como fachada para uma boca de fumo e um ponto de tráfico, não significa que eu não possa aparecer no jornal, cacilda! Afinal, eu nunca matei ninguém, nunca roubei e respeito crianças e adolescentes, ao contrário de gente boa por aí que, pra piorar, é político de carreira! Um deles, na eleição passada, até veio aqui pedir uns votos em troca de uma menininha virgem."

Margarida Maria Madalena Matilda também não gostou de ter sido descartada. Sua façanha, jovem ainda: andar de um lado para outro com sua flácida barriga dependurada para fora de roupas multicoloridas, com um olhar azul de trucidar quem lhe cruzar o passo, e manter despercebida, até a última semana, a gravidez que trazia à vista de todos.

E tem o Cruz. Esse está inconsolável! Formado em Farmácia e Bioquímica, o douto senhor (como exige ser chamado) José António de Aragão y Cruz pesquisa há anos as propriedades do Fedra, um sabonete fabricado nas cercanias de Tessalônica, cuja embalagem apregoa virtudes de assegurar "pele firme e flexível, sempre jovem, e cabelos fortes, fartos e viçosos, crescendo sem parar". Isso lhe pareceu uma charada esfíngica à moda de Tebas (grega, portanto, assim como a procedência do sabonete azul). Lembram da história do "decifra-me ou te devoro"? Pois então, essa associação com comida aguçou-lhe ainda mais a atenção sobre o Fedra, do qual acabou se tornando, para fins de suas pesquisas acadêmicas, o maior importador da região.

Sua grande insatisfação com a omissão da imprensa em relação a si e ao seu trabalho brota da circunstância (a cor azul do sabonete, recordemo-nos) de que ele acredita estar na pista de uma espécie de viagra para uso externo.

*Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 1.8.2011, é um dos seis candidatos à Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras. Crônica publicada na edição de hoje (3.8) do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.

Filhote do gigante adormecido no Tabuleiro. Foto: Celso Martins

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