31.8.11

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O meu canto para escrever

Ilustração: Uelinton Silva

Por Amílcar Neves*

Não é que eu cante para poder escrever, ou para melhor escrever, nada disso. Mesmo porque, se dependesse dos meus dotes desenvolvidos nas aulas de Canto Orfeônico, no ginásio, eu jamais conseguiria enfileirar três palavras que fizessem algum nexo, que tivessem alguma lógica, que construíssem algum sentido.

Não é, também, que o meu texto seja assim melhor do que a minha desafinação orfeônica. A qual é crônica e incurável. Daí, talvez, o meu apreço incurável pela crônica em geral. Mas, confesso, o que prefiro mesmo é ler a crônica dos outros, escrita por escritores de verdade. Ainda mais porque, reconfesso, essas que eu faço leio-as exaustivamente até dá-las por findas. Ou até dar-me a mim por exausto, o que ocorrer primeiro. Depois não mais ponho os olhos sobre elas, a menos quando um ou outro leitor - e isto é raríssimo acontecer - resolve me confortar (a troco de nada, nada tenho para dar de troco além de palavras) dizendo que gostou demais dessa ou daquela crônica, o que me força a ir atrás dela, meio desconfiado, para tentar descobrir o que poderia tê-lo ou tê-la seduzido. Nesses casos ímpares, leio uma crônica impressa de minha autoria. E somente em tais casos.

Nada disso, entretanto, me exime de escrevê-las, às crônicas. E, para tarefa de tamanho esforço, concentração e dedicação, conto com o segredo do meu canto, um local sossegado, tranquilo e retirado, quando o estabeleci como tal.

Trata-se do meu escritório doméstico na casa térrea que um dia consegui comprar num loteamento rural que foi a chácara dos padres do Colégio Catarinense e que ficou emperrado por uns tempos, questão de dois ou três anos, por conta de entraves burocráticos associados ao desenho das ruas que não casava com o limite dos lotes.

Mas aí eu já estava instalado e tudo, com um amplo janelão à minha frente dando-me a visão dos campos em volta, o odor das vacas pastando e o eco das assombrações que, diziam os nativos do lugar, por ali abundavam. Eis o local aprazível, ideal para trabalhar, cogitei eu lá comigo: o meu canto para escrever!

Isso foi já faz um tempo. É claro que, se eu cheguei aqui, muitos também lograram semelhante façanha. E a fazendola foi-se povoando à custa da expulsão gradativa dos lobisomens, bruxas e boitatás, com casas (por enquanto apenas casas) por todos os lados. Mas eu persisti, mantive a minha trincheira, o meu canto de guerra (pois escrever é uma batalha sem fim).

Hoje, tenho os feriados e finais de semana como períodos mais propícios à atividade. O janelão da frente muitas vezes precisa ser fechado porque as pessoas que passam pela calçada são loucas para conversar com quem está sem fazer nada (pois escrever é fazer nada). Mas então, nos feriados e finais de semana, os vizinhos resolvem cortar a grama com máquinas barulhentas ou varrer as calçadas, limpar os muros e polir os portões de aço com potentes máquinas de pressão de água. Ao terminar a minuciosa tarefa semanal, por três minutos e meio a paz desce à terra e inunda de felicidade o coração dos homens de boa vontade. Três minutos e meio é o tempo que um cidadão leva para ir ao banheiro, beber um copo d'água e trazer para a rua o carro da família. Ato contínuo, começa a lavá-lo. Com sua potente máquina. Bem na cara do meu janelão.

Não é brincadeira não, mas sabem onde melhor consigo escrever nos dias de hoje? Com mais calma, tranquilidade e paz de espírito? Nas arquibancadas da Ressacada, enquanto o jogo não começa. Palavra de honra.

*Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 01.08.2011, é um dos seis candidatos à Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras. Crônica publicada na edição de hoje (31.8) do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.

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