29.12.09

E S P E C I A L


Por Amauri Soares*

Semana passada, o Congresso Nacional aprovou a lei que concede anistia para praças de nove estados, incluindo os militares catarinenses que participaram do movimento reivindicatório de dezembro de 2008. Agora só falta o presidente Lula assinar.

Começo dizendo que ninguém precisa engolir nada! E começo assim justamente para provocar um susto. A intenção aqui é traçar linhas que nos permitam continuar caminhando para vitórias. Mais do que um jogo de engolir ou deixar de engolir, precisamos é refletir sobre tudo, e nos fazermos amanhã melhores do que éramos ontem, todos nós, de todas as graduações e de todos os postos.

Os comandantes de amanhã serão outros, e também os comandados serão outros. Isso vai acontecer objetivamente, trocando mesmo as pessoas com o passar dos tempos. Mas, buscando lá nos primórdios do conceito de dialética, encontramos a seguinte afirmativa como verdadeira: "Um mesmo homem não consegue mergulhar duas vezes no mesmo rio, pois, na segunda vez que mergulhar, tanto o homem quanto o rio já não serão os mesmos.” A afirmativa do filósofo é mais ou menos essa, se não no texto, pelo menos na idéia.

Significa que todos os homens e as mulheres, assim como todas as outras coisas, estão em constante movimento, em constante processo de mudança. A mesma coisa, por ser composta por seres humanos, vale para as instituições. Portanto, desde o dia 22 de dezembro de 2008, não somos os mesmos. A instituição mudou e buscou reconstituir seus princípios (ou o princípio da cabeça de alguns vários da cúpula) usando os regulamentos disponíveis para castigar com rigor aqueles que julgaram (e vários ainda julgam) ter atentado contra tais princípios. E partiram para uma cruzada, na cabeça deles a cruzada para restabelecer as normas e os comportamentos dos tempos que eles consideram ser os “bons tempos”. E os bons tempos para eles é aquele tempo em que “soldado não pensava”, ou, noutros termos, “praça não pensava”.

O movimento patrocinado pela cúpula ao longo de 2009 foi um movimento de retrocesso a tempos passados, portanto, um movimento no sentido de fazer a história retroagir. Em termos políticos, um movimento reacionário. Já o projeto aprovado pela Câmara Federal e pelo Senado em apenas dois dias, joga tudo para o futuro, e contrapõe o movimento interno da cúpula. Aliás, de várias cúpulas.

E não é correto dizer que os deputados e senadores agiram de modo casuístico, oportunista, político no mal sentido da palavra. Não, eles não agiram assim! É claro que foi uma decisão política, mas de um calibre bem maior. Começa que o projeto teve origem no Senado, depois de pleiteado pelos companheiros do Rio Grande do Norte, onde 1.300 praças foram excluídos por deserção, porque ficaram concentrados em um mesmo quartel durante mais de oito dias, numa “quartelada”.

O Senado é uma casa legislativa formada por uma maioria de ex-governadores. Será que os senadores, começando pelo senador Garibaldi Alves Filho (PMDB), autor do projeto, não refletiram sobre isso? Será que todos os outros senadores, um bocado de ex-governadores, que já o aprovaram no ano passado pela primeira vez, não refletiram sobre o que estavam fazendo? Claro que refletiram, e sabem mais ou menos bem como são as coisas nas casernas estaduais de todo o Brasil.

Aliás, eles sabem que muita coisa tem que mudar na estrutura das instituições militares estaduais. Não é por acaso que tem propostas de emendas à Constituição no Senado propondo desmilitarizar as polícias e os bombeiros. E o autor é o ex-governador Tasso Jereissati (PSDB). Eles percebem que a coisa como está não pode melhorar muito para além da realidade atual.

Então, a virulência no uso de instrumentos de coerção acaba firmando convicções de que é preciso um "basta" a certas coisas. Esses choques de conceitos provocam mudanças na forma de pensar de todos os diretamente envolvidos nestas situações e, inclusive, na sociedade que se preocupa com segurança e presencia tais episódios.

Os praças do século XXI não são mais os mesmos do século XIX, e nem do XX. Já não dá mais para tratar os soldados de hoje como tratavam os soldados da Guerra do Paraguai, e muitos ainda não perceberam. Começa que todos entram por concurso, portanto, não ficam devendo nada a ninguém. Mas tem muitas outras coisas que mudaram na sociedade, inclusive o acesso a informação. Quem diria, há 20 anos, que em 2009 os praças debateriam seus problemas, quase em tempo real, em um fórum na internet, público e democrático?

Então as alternativas são apenas duas: ou a coisa muda pelo diálogo, pelo consenso, pelo convencimento, pela racionalidade, ou então mudará de outro modo, não muito convencional. Claro que, se ambos os lados firmarem o pé na sua forma, na sua velocidade, no seu ritmo, aí a coisa estoura e as convulsões continuarão, até que os poderes da República resolvam mudar meio que no empurrão.

Peguemos o exemplo da revolução burguesa. A nobreza da Inglaterra, depois de muito espernear, depois de muitas revoltas populares, percebeu o rumo do mundo, e resolveu se aliar a burguesia nascente, constituindo governos constitucionais e eleitos pelo povo, mas mantendo o Estado nas mãos da nobreza. Com isso, ainda hoje se canta o “Deus salve a rainha” no hino inglês. Já a nobreza da França não entendeu! Não quis nem saber, mandou ver com Luiz XIV, com Luiz XV e sua turma, mandando prender na bastilha todos os opositores, fossem burgueses radicais, camponeses ou os líderes do nascente movimento operário. E assim foi, até que a burguesia, aporrinhada com tantas regras retrógradas, aliou-se aos operários a aos camponeses, derrubou a bastilha e cortou a cabeça da nobreza, literalmente.

Pego esse exemplo apenas como método, sem nenhuma intenção de dar recado. Se a nossa questão não se resolver pelo diálogo, pelo consenso, pela racionalidade, vai se resolver de outra forma. Nós, os que estamos ou que vamos para a linha de frente, ou seja, os manifestantes do dia 22 de dezembro, somos apenas instrumentos dessa mudança que precisa existir. Mesmo o massacre contra alguns (ou vários) é um elemento de elevação da consciência geral, dos praças, dos oficiais e da sociedade. João cândido, “o navegante negro”, comandou a Revolta da Chibata, apontando os canhões dos navios de guerra contra a cidade do Rio de Janeiro, em 1910. Nunca mais um praça foi punido com castigo físico, embora punições severas tenham continuado. Sim, até então apanhávamos de chibata, assim como hoje ficamos até 30 dias presos, muitas vezes por uma bobagem!

Evidente que nenhum de nós preferia que se chegasse ao ponto que se chegou em dezembro do ano passado! Queríamos apenas que o governo nos respeitasse, e parasse de enrolar, e fizesse uma proposta objetiva, colocando na mesa datas e números. O governo não fez isso, e usou a desgraça do povo do Vale do Itajaí para continuar nos ignorando de forma vil. Isso foi o que mais irritou, pois já nos primeiros dias de dezembro do ano passado começaram a anunciar festas de natal em Blumenau e em Florianópolis. Nosso movimento deu uma segurada na “alegria” deles, mas realizaram as duas festas: em Blumenau nas vésperas do natal (lá, por respeito ao povo atingido, não fizemos movimento); em Florianópolis, na virada do ano. Só não tinha árvore de 3,7 milhões, como agora, mas por certo gastaram um bom dinheiro em fogos!

Não esperávamos aquele comportamento da cúpula. O movimento que era para pressionar o governo foi entendido pela cúpula como um movimento contra ela. O processo adquiriu dinâmica que não foi a escolhida por nós. O movimento prolongou-se pára além do esperado, em resposta ao comportamento obtuso do governo. Só faltou irmos para a bala! Mas armas em punho foram vistas, não da nossa parte! Naturalmente, não queríamos aquilo,e até tentamos, de nossa iniciativa, uma negociação na véspera do natal. O governador desautorizou qualquer negociação, justamente porque nunca quis negociar nada! Esperamos nunca precisar repetir tal situação. Mas, se por infelicidade tiver que acontecer, agiremos diferente, antes, durante e depois.

A saída digna para a instituição militar estadual seria o diálogo. Mas o governador mandou punir de forma exemplar, e vários gostaram. Teve gente exultando, comemorando mesmo, pois iam, enfim, voltar pelo menos 50 anos na história! Ainda antes de terminar 2008 o comandante disse que ia prender mil e excluir trinta, ao invés de dizer que lamentava e que buscaria superar os fatos da forma menos traumática possível. Se tivesse agido assim, a segurança pública estaria muito melhor em Santa Catarina, todos teríamos nos comportado de forma diferente nos longos meses de 2009. Mas, não, o comandante resolveu ir à desforra. O mesmo comandante que no dia 26 de dezembro ameaçava (supostamente) aqueles que queriam provocar um combate armado nos quartéis, contra o nosso movimento, dois dias depois estava dizendo que prenderia mil e excluiria trinta, para tentar agradar a parte mais reacionária da cúpula e o governador, um “desequilibrado”. Sim, ele agiu como um desequilibrado, como a nobreza da França em 1789.

Mas nós não estávamos para a guerra, e nem tínhamos nos preparado para isso. Queríamos o pagamento da Lei 254, e voltar a trabalhar normalmente. Fizemos vigílias, uma tática quase religiosa, mas mesmo assim usaram imagens das vigílias para ferrar gente no Conselho de Disciplina, como se as imagens fossem do período entre 22 e 27 de dezembro. Queriam castigo, severo, à qualquer custo, mesmo ao custo de mentiras e construção ilegal de provas, ou, ainda, sem provas.

Agora o Congresso Nacional aprova, de forma célere, a anistia. Do lado de cá, comemoramos, é claro, e nem poderia ser de outro modo. Se, do lado de lá entenderem como uma espiga amarga, enfiada goela abaixo, estaremos caminhando para mais longe da resolução de nossos problemas. Quanto mais for obstruída a vontade cristalina decretada pelo Poder Legislativo nacional, maior será o desgaste interno das instituições. Quanto mais nós acharmos que agora podemos fazer e dizer o que quisermos, mais caminharemos para longe do objetivo.

Anistia é sinônimo de concórdia, e não de mais discórdia! Ambos os lados do processo devem entender dessa forma, e não de nenhuma outra. Significa que temos que restabelecer as pontes, não com as pessoas, e sim em relação às instituições e seus objetivos maiores, que é fazer segurança pública para a população, e não para os fins políticos de uns e de outros. As pessoas passam; os objetivos sociais e institucionais são permanentes.

Em 22 de dezembro fez um ano do início desse processo. Podemos prolongar mais tempo o sofrimento mútuo, as máculas da instituição, o prejuízo para a sociedade. Ou podemos começar um novo período, de mais entendimento, mais respeito mútuo, mais igualdade no tratamento. O comandante vai embora logo, e eu também quero ir assim que possível. No tempo que me resta, quero falar de segurança pública, de justiça compartida, de projetos institucionais mais amplos, de direitos sociais efetivos.

A Associação dos Oficiais (ACORS) fez um outdoor reclamando da discriminação contra os oficiais. A Associação dos Praças (APRASC) fez o seu reclamando a perseguição e da discriminação contra os praças. E ambos juramos que estamos certos! E ambos afirmamos que defendemos o conjunto da instituição. Por que será que não fizemos um único outdoor, defendendo R$ 2 mil de abono para os coronéis, R$ 500 reais o soldado de um ano de serviço e a proporção adequada para todos os outros postos e graduações? Respondo: porque continua prevalecendo a política da “farinha pouca, meu feijão primeiro”!

A hora é de comemorar, pela aprovação do projeto de anistia, sim! Mas, na questão salarial, não continuamos apanhando? Enquanto brigamos internamente, outros avançam, e parabéns para eles! Enquanto o comandante continuar sendo submisso à vontade do governador, estamos todos em uma situação complicada, e a população mais ainda. Luiz Henrique usa e descarta tantos quantos acreditam nele. Ele atende com respeito só aqueles dos quais precisa, e quando sua necessidade está satisfeita, ignora olimpicamente. Quem ainda não percebeu isso?

Enfim, que venha a anistia! Ainda mantenho aquele velho sonho de que as coisas se resolvam da melhor forma possível. Mas não perdi a bússola, e sei que a realidade é nua e crua. Sejamos pelos menos racionais, e continuemos marchando na nossa cadência. Já esteve mais errado nosso passo. Hoje, um ano depois, podemos dizer que a APRASC continua existindo, e que sobreviverá a Luiz Henrique a aos seus.

Precisamos de todos os homens justos e honestos do nosso lado, ou melhor, do lado da justiça, que é o lado onde temos buscado estar.

*2º Sargento Amauri Soares. Presidente da Aprasc. Deputado Estadual.

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