12.5.10

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Viagem em busca do Inferno


Por Amílcar Neves*

É noite de sexta-feira quando, subitamente, toca o telefone. Na verdade, telefones sempre tocam de repente, independente de ser noite. Ou de ser sexta-feira. Do outro lado da linha, um amigo.

- Preciso de um favorzão, mas tens que prometer que vais fazer agora.

Claro, que é que não fazemos por um amigo?

- Estou lançando uma nova edição do Harmonias do Inferno, o meu livro de contos. Como disseste outro dia que o tinhas lido recentemente, quero três linhas tuas para a orelha do livro - e desligou.

Diabos, pensei cá comigo, onde andará esse Inferno? Li o livro, sim, mas era um exemplar emprestado, o meu esconde-se pelas estantes, em alguma delas. Faço apenas uma certa ideia, bastante vaga, desse lugar protegido dos olhos.

Nos tempos em que ninguém tinha computador em casa, o meu sonho era uma maquineta dessas para catalogar (e achar quando quisesse ou precisasse) toda a minha biblioteca. Certo dia logrei completar a tarefa e, no fim do século XX, em 2000, lá estavam registrados todos os meus 2.864 exemplares. O problema é que, de lá para cá, comprei muitos livros, as estantes aumentaram de metragem, transbordando da minha sala para um dos quartos da casa, e nunca mais atualizei as tais fichas eletrônicas. Mais: nada disso eliminou as filas duplas de livros, que transbordaram junto com as novas prateleiras, as vastas áreas no início vazias rapidamente ocupadas por hordas de livros famintos de espaço.

Encurtando a história: deixei de lado o que tinha para fazer e mergulhei nessa selva emaranhada durante o resto da noite.

Li centenas de lombadas, tomei nas mãos dezenas de volumes para admirar-lhes a capa e espiar-lhes o interior, revi inúmeros amigos diletos. Trepei em bancos, cadeiras e escadas, espanei e arredei a turma da frente para chegar ao pessoal do fundo, vi livros dos quais nem me lembrava mais. Curti uma intensa nostalgia de não ter o tempo, a tranquilidade e o dinheiro suficientes para poder passar os dias lendo-os e relendo-os. Era como se tivesse entrado em uma livraria só com os livros de que gosto.

Infelizmente, lá pelas tantas, duas horas e meia depois, subitamente dou de cara com as Harmonias do Inferno e fico sem a desculpa de continuar manuseando meus livros, perdendo-me no prazer de tocá-los. E tive que cumprir a promessa feita ao Marco.

Devia ser proibido catalogar bibliotecas em computadores.


*Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 31 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior. Crônica publicada na edição de hoje (12.5) do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.

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