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Poesia e crônica
AMÍLCAR NEVES E
EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
Poesia e crônica
AMÍLCAR NEVES E
EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
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PLENITUDE – NÃO PERFEIÇÃO
Por Emanuel Medeiros Vieira
Por Emanuel Medeiros Vieira
Para Cida, irmã, amiga, comadre, infinitamente amiga
“Um dos motivos mais poderosos que
conduzem o homem em direção à arte
e à ciência é o de escapar do cotidiano”.
(Albert Einstein)
conduzem o homem em direção à arte
e à ciência é o de escapar do cotidiano”.
(Albert Einstein)
A quarta-feira,
o lado-sombra,
dentro de cada um,
pão, café,
o paraíso pode ser o outro,
não só o inferno?,
o mito é o nada que é tudo,
escreve Pessoa,
um arquétipo universalmente conhecido,
eu sei, é Jung, não Freud,
inconsciente coletivo,
mas de onde vem essa apreensão?,
esse temor metafísico contemplando o mar,
ah, brisa marinha
sempre aspirei a plenitude,
não a perfeição,
sou mortal,
agonia sem nome,
na manhã bela e repetida
a apreensão continua
vontade de chorar ouvindo Cartola e a voz de Elis,
pensando na coleção de amigos mortos,
Ela te contempla,
a Cachorra, a que te colocará de pés juntos,
novamente citações:
“Deve haver no mais pequeno poema de
Um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero”
(Pessoa — novamente).
Voltarei sempre com as mãos vazias?
Mas estou pleno dessa finitude,
Já sem medo, reconciliado,
olhando as vidas tão “pequenas” e anônimas,
ônibus, salário pequeno, hospital cheio,
a luta de cada dia.
Resta-me a esperança de que um só leitor, um só
–se houver leitores –
daqui a mil anos, entenda o meu esforço
(acolher a linguagem no mundo quebrado).
(Salvador, novembro de 2010)
*
M Í M E S I S
Por Amílcar Neves*
M Í M E S I S
Por Amílcar Neves*
Acordou e, como de hábito, saiu da cama e foi até o banheiro, percurso conhecidíssimo, capaz de fazer no escuro, de olhos fechados. Como, de fato, muitas vezes fez, naquelas de continuar dormindo quando se acorda com urgências noturnas.
Não foi nada diferente, desta feita. De relance, percebeu um par de pernas magníficas deixadas à mostra pelo lençol que escorregou para o lado: pernas longas, elegantes, perfeitas, que muito lhe lembravam pernas familiares, as pernas de Mônica quando se apresenta de short curtinho na churrasqueira da casa deles, dela e de Eduardo, que ele amiúde frequenta. Percebeu as pernas na cama de onde acabara de levantar e pensou consigo, a continuação do meu sonho de agora mesmo, um sonho atribulado que lhe vinha em fragmentos à consciência.
Por isso, por saber tratar-se de um sonho, não se deteve por causa das cobiçadas pernas (não cobiçava propriamente a mulher do próximo, apenas uma fração dela) e rumou para o banheiro. Apesar dos olhos turvos e do peso que sentia na cabeça, o ar era tépido e perfumado na penumbra da alcova habitual. Restos de lembranças da festa da véspera confundiam-se com retalhos dos sonhos generosos que tivera, de tal sorte misturados uns com os outros que não conseguia mais distinguir a realidade da fantasia. Talvez porque tudo fosse, quem sabe, uma confusão só.
No banheiro, também num procedimento automático, pelas tantas mirou o espelho, e era o espelho de Eduardo no banheiro de Eduardo. Mirou o espelho porém era como se não estivesse exatamente mirando-se ao espelho, pois havia uma incômoda defasagem entre seus gestos e as imagens que o espelho devolvia. Como em certos filmes com falha de sincronia entre os movimentos da boca e o som que se ouve: o sujeito começa a falar e o som correspondente sai um pouco depois de os lábios se mexerem, de tal forma que, terminada a imagem da fala, a voz ainda se demora completando a frase. Algo muito incômodo, claro, todo mundo já viu isso.
Só que, no caso, o assincronismo se dava entre ele e o espelho, o que é infinitamente mais terrível e assustador. Levantou a mão direita e o espelho gastou alguns milésimos de segundo até levantar a mão esquerda da imagem. Como um espelho lento, muito carregado.
Voltar para a cama de imediato, decidiu Manoel Osório. Mas havia um sério problema a enfrentar: e se aquelas pernas não estiverem mais lá?
Não foi nada diferente, desta feita. De relance, percebeu um par de pernas magníficas deixadas à mostra pelo lençol que escorregou para o lado: pernas longas, elegantes, perfeitas, que muito lhe lembravam pernas familiares, as pernas de Mônica quando se apresenta de short curtinho na churrasqueira da casa deles, dela e de Eduardo, que ele amiúde frequenta. Percebeu as pernas na cama de onde acabara de levantar e pensou consigo, a continuação do meu sonho de agora mesmo, um sonho atribulado que lhe vinha em fragmentos à consciência.
Por isso, por saber tratar-se de um sonho, não se deteve por causa das cobiçadas pernas (não cobiçava propriamente a mulher do próximo, apenas uma fração dela) e rumou para o banheiro. Apesar dos olhos turvos e do peso que sentia na cabeça, o ar era tépido e perfumado na penumbra da alcova habitual. Restos de lembranças da festa da véspera confundiam-se com retalhos dos sonhos generosos que tivera, de tal sorte misturados uns com os outros que não conseguia mais distinguir a realidade da fantasia. Talvez porque tudo fosse, quem sabe, uma confusão só.
No banheiro, também num procedimento automático, pelas tantas mirou o espelho, e era o espelho de Eduardo no banheiro de Eduardo. Mirou o espelho porém era como se não estivesse exatamente mirando-se ao espelho, pois havia uma incômoda defasagem entre seus gestos e as imagens que o espelho devolvia. Como em certos filmes com falha de sincronia entre os movimentos da boca e o som que se ouve: o sujeito começa a falar e o som correspondente sai um pouco depois de os lábios se mexerem, de tal forma que, terminada a imagem da fala, a voz ainda se demora completando a frase. Algo muito incômodo, claro, todo mundo já viu isso.
Só que, no caso, o assincronismo se dava entre ele e o espelho, o que é infinitamente mais terrível e assustador. Levantou a mão direita e o espelho gastou alguns milésimos de segundo até levantar a mão esquerda da imagem. Como um espelho lento, muito carregado.
Voltar para a cama de imediato, decidiu Manoel Osório. Mas havia um sério problema a enfrentar: e se aquelas pernas não estiverem mais lá?
"Uma das senhoras da tal escola havia organizado uma festa para as adolescentes da escola e havia convidado um atorzinho da Globo, desses que estouram em determinada novela e são totalmente esquecidos em seguida, para dançar uma valsa com a 'sortuda' aluninha sorteada para realizar este 'sonho de Cinderela'. E disse-nos a dita senhora [a nós, à pobre Marcia Kupstas e ao pobre eu, que não receberíamos sequer um tostão de cachê] que o evento fora um sucesso e que o tal atorzinho havia cobrado 'apenas'... 3 mil dólares de cachê!"
Pedro Bandeira, O escritor-brinde.
Pedro Bandeira, O escritor-brinde.
*Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior. Em breve, Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo (teatro) chegará às prateleiras das livrarias. Crônica publicada na edição de 24.11.2010 do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.
Um comentário:
essa foto do pôr do sol está realmente linda! parabéns Celso!
Abçs, Michelle.
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