6.7.11

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Aníbal, Pedro
e outro povo
também real


Por Amílcar Neves*

Ninguém mais escreve cartas, seja de próprio punho, seja, mesmo, pelo computador, pelo celular ou pela tabuleta (ou tablet, também conhecida como tabuinha ou prancheta, para os que não sabem do que cá se fala) para depois imprimi-las e enviá-las da forma tradicional. Ninguém mais escreve cartas, ninguém mais vai ao Correio, instituição anacrônica que não há quem consiga explicar como ainda permanece viva, pois hoje tudo se dá, se faz e acontece pela internet, assim como antes só acontecia se tivesse dado na televisão. Exemplos mil existem por todos os cantos.

Se ninguém mais escreve cartas nem, claro, vai mais ao Correio, só pode beirar o absurdo, ser o fruto podre de uma mente doentia e em franco processo de decomposição, uma narrativa que comece assim:

"Eles se encontraram por acaso na agência do Correio."

A admissão da casualidade, a pretensão de que o encontro tenha ocorrido por acaso, é o que mais depõe contra a seriedade do texto e a sanidade mental do autor. Não existem acasos nem coincidências no Correio. Não existem pessoas se esbarrando no Correio.

Eles se encontraram por acaso na agência do Correio. Aquele que veio depois olhou atentamente para o sujeito à frente, postado meio de lado, examinou os poucos traços do rosto que lhe ficavam visíveis, analisou cor e corte do bigode, aspecto e textura da pele e, convicto da verdade, adiantou-se, batendo-lhe amistosamente nas costas:

- Doutor Aníbal! Que bom te ver, meu caro amigo, meu grande colega de faculdade! Há quanto tempo!

O outro virou-se sorridente - o Aníbal não era Aníbal - e disse:

- Fico satisfeito que tenhas me confundido com alguém por quem, a julgar pelo tom da tua voz, tens uma amizade profunda. Podias ter pensado que eu fosse um inimigo e chegado me agredindo. Bom dia, amigo, o meu nome é Pedro - e puseram-se os dois a conversar como velhos amigos.

O sábado, pois, começava bem, independente e apesar do tempo (chuvoso, friorento) que fazia lá fora. Ao chegar ao carro, o amigo do Aníbal, e também do Pedro, foi abordado por um homem que pedia dinheiro para comprar pão para a filhinha:

- Já consegui um leite, que me deram ali - e apontou vagamente para um lugar indefinido qualquer. - Queria agora levar um pãozinho para ela - falava um português cultivado.

- E o que fazes na vida? Qual é a tua idade? - quis saber.

- Estou na condicional, faltam 17 dias para terminar. Trabalho como pedreiro, tenho 28 anos e andei fazendo umas bobagens na vida. O dono da empresa disse que vai me fichar se eu não tiver problema nenhum até o fim da condicional. E não vou ter.

- O que andaste aprontando para te enfiarem em cana?

O homem ficou sério um instante, depois levantou a camisa e revelou uma barriga retalhada de cicatrizes.

- Tiros e facas. Quase morri, todo arrebentado. Me meti com roubo, tráfico de drogas e assalto à mão armada. Mas nunca matei ninguém, sorte minha, por isso consegui a condicional.

- Droga também?

- Claro. Bagrinho como eu entra pro tráfico pra pagar o consumo pessoal. Coisa de otário. Se não pagar, os caras te apagam. Me dou por feliz por ter escapado disso tudo, hoje estou limpo. Só penso agora na minha criança, quero dar uma vida decente pra ela. Quero que ela possa olhar bem dentro dos meus olhos. Obrigado, senhor, vou falar agora com aquela mulher ali, ver se ela me arruma mais umas moedinhas, esse pouco para mim é muito, muito obrigado mesmo, de coração.

O sábado prosseguia. Bem, ao que parece.


*Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados e candidato à Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras, que tem Manoel dos Santos Lostada como patrono e ocupada até recentemente pelo presidente da instituição, Lauro Junkes. Crônica publicada na edição de hoje (6.7) do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC). Reprodução autorizada pelo autor.

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