Aos fuzilados de Anhatomirim
Segundo nosso escritor, poeta, jornalista e amigo Oldemar Olsen Jr., a Novembrada foi um "movimento de protesto que começou com o impedimento da instalação de uma placa em homenagem ao Marechal Floriano Peixoto".
Não é a primeira vez que o viking nascido em Chapecó e exilado na Lagoa da Conceição repete isso. Ele realmente acredita que a Novembrada tenha se originado numa placa em homenagem a Floriano Peixoto. Não só ele, muitos vão pela mesma trilha.
Em novembro do ano passado assisti a um debate na UFSC em que participaram os professores Remy Fontana e Luis Felipe Miguel. Eles discorreram sobre a Novembrada e em momento algum citaram a referida placa. Enfatizaram, sim, a importância que teve o protesto contra a visita do presidente Figueiredo no fim da ditadura militar. E foi isso o que aconteceu.
Eu era repórter do jornal O Estado e cobri todos aqueles eventos. Morava no bairro da Trindade e frequentava quase todas as "repúblicas" estudantis, sobretudo aquelas em que residiam estudantes de esquerda e/ou de oposição. Na qualidade de membro da comissão de agitação e propaganda ligada à direção do PCB em Santa Catarina, atuava desde 1975 nos bastidores do movimento estudantil da UFSC (fui aluno do Colégio de Aplicação por sete anos e conhecia a Universidade por dentro). Tinha contatos com quase todos os líderes acadêmicos (alunos e professores).
Cheguei ao local dos protestos com os estudantes que o lideraram. Deixamos o DCE e descemos pela rua Tenente Silveira distribuindo panfletos e com as faixas enroladas embaixo dos braços. "Abaixo a exploração", "Abaixo a fome", "Mais arroz e mais feijão". Tudo começou timidamente. As escadarias da Catedral estavam repletas de crianças das escolas levadas pelo Governo do Estado, mas que aderiram depois ao protesto. Os estudantes da UFSC começaram a gritar as palavras de ordem. Os ânimos foram se alterando. Havia um "clima", alguma "coisa no ar", a sensação de que algo ía acontecer. Figueiredo apareceu na janela. O coro já era o de uma multidão. Ele fez um sinal com os dedos e a massa entendeu que ele estava mandando a gente tomar naquele lugar. Um líder do torcida do Avai puxou: "Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos Figueiredo vá pra puta-que-o-pariu" - Figueirense foi substituído por Figueiredo. O sujeito que começou com isso é guia turístico no terminal Rita Maria.
Foi então que o ditador que tentava vender a imagem de João, o amigo do povo, partiu para a ignorância e desafiou o governador Jorge Bornhausen a enfrentar os estudantes no tapa (o próprio Bornhausen me declarou isso). Jorge recusou. Figueiredo ficou encolerizado e foi contido pelos seguranças. Depois foi ao Ponto Chic, onde o tumulto continuou. Nesse meio tempo, os manifestantes destruíram tudo o que lembrava a visita presidencial: as faixas e bandeirolas, um enorme balão colocado na altura do antigo Miramar (foi arrastado pela multidão ao redor da praça), cartazes, e uma placa que seria inaugurada em homenagem a Floriano Peixoto, mas que se fosse em honra ao Senhor dos Passos teria o mesmo destino.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu. Não houve qualquer tentativa de inauguração da placa. Quem organizou o protesto e dela participou, nem sabia da sua existência. Só depois do dia 30 de novembro de 1979 é que se tomou conhecimento. O autor da invenção de que a Novembrada fora motivada pela homenagem a Floriano é o sociólogo Robert Henry Srour (A política dos anos 70 no Brasil. São Paulo: Econômica Editorial, 1982) - um "livro interessante, mas incompleto", segundo Luis Felipe Miguel.
O então candidato pelo PMDB à Câmara de Vereadores de Florianópolis, Rogério Queiroz, que na época da Novembrada não residia em Florianópolis, aproveitou o embalo. Uma vez eleito, começou em 1983 uma campanha para mudar o nome da cidade, logo angariando as simpatias dos descendentes dos fuzilados na Revolução Federalista de 1893-95 na ilha de Anhatomirim e de outros. É bom esclarecer que só a partir desse momento os acontecimentos do final do século 19 ganharam visibilidade. Até então se tratava de um episódio desconhecido e/ou esquecido, como o Contestado era quase completamente desconhecido. A deturpação foi repetida por Eduardo Paredes em seu filme sobre a Novembrada. Outras áreas da criação cultural acabaram contaminadas. É possível que professores repitam isso nas escolas a seus alunos.
Reduzir a Novembrada a uma placa é desconsiderar a grande efervescência política na segunda metade da década de 1970 em Santa Catarina, sobretudo em Florianópolis. É não levar em conta a presença do PCB na organização do MDB no Estado, com importante participação desde 1966 e no pleito de 1974; a reorganização do movimento estudantil na UFSC iniciada sob a liderança de Marcos Cardoso Filho e sua expansão até a reorganização da UCE e da UNE, com o surgimento de diversos grupos políticos; a intensa campanha pela anistia motivada sobretudo pelas prisões de 4 de novembro de 1975 (Operação Barriga Verde, 42 integrantes do PCB presos); o surgimento de grupos feministas; a atuação da "geração mimeógrafo" de literatura e a agitação cultural (poucos se lembram das feiras de arte de rua em Brusque); o Núcleo Anarquista de Florianópolis (NAF); o jornal Contestado e a imprensa alternativa - circulação dos jornais Politika, Versus, Pasquim, Opinião, Movimento e Hora do Povo.
Se algum morto foi lembrado no momento em que se confrontou a ditadura, não foi nenhum do século 19, talvez Herzog, Manuel Fiel Filho ou dezenas de outros que perderam a vida combatendo o regime de 1964, sofreram o exílio e a perseguição. Ou as torturas sofridas pelos presos da Operação Barriga Verde em Santa Catarina - afogamento, choque elétrico, pau-de-arara, empalamento, "telefone", "latinha".... Os "desaparecidos" até hoje, por aqueles aos quais Figueiredo representava. Afinal, era isso o que denunciavam os poetas, alguns parlamentares do MDB, a imprensa alternativa e a campanha pela anistia. Era isso o que talvez estivesse presente no imaginário dos que fizeram a Novembrada, jamais os fuzilamentos do final do século 19.
Toda a agitação política dos anos 1970 será trabalhada num futuro livro, o primeiro de minha autoria que surge com um título pré estabelecido: Antes da Novembrada, com fartura de imagens (fotos, desenhos, cartazes, publicações, etc). Cobri a Novembrada. Estava lá. Não foi nada disso de que andam falando. O protesto foi político, contra a ditadura. Vincular o evento aos episódios de Anhatomirim é forçar a barra, diminuir a importância e a dimensão de manifestação que fugiu do controle dos organizadores e foi apropriada pela multidão que lhe deu um significado. E que não foi em nome daqueles aos quais dedico o presente artigo.
Celso Martins, Florianpólis-SC (11.1.2010)
Não é a primeira vez que o viking nascido em Chapecó e exilado na Lagoa da Conceição repete isso. Ele realmente acredita que a Novembrada tenha se originado numa placa em homenagem a Floriano Peixoto. Não só ele, muitos vão pela mesma trilha.
Em novembro do ano passado assisti a um debate na UFSC em que participaram os professores Remy Fontana e Luis Felipe Miguel. Eles discorreram sobre a Novembrada e em momento algum citaram a referida placa. Enfatizaram, sim, a importância que teve o protesto contra a visita do presidente Figueiredo no fim da ditadura militar. E foi isso o que aconteceu.
Eu era repórter do jornal O Estado e cobri todos aqueles eventos. Morava no bairro da Trindade e frequentava quase todas as "repúblicas" estudantis, sobretudo aquelas em que residiam estudantes de esquerda e/ou de oposição. Na qualidade de membro da comissão de agitação e propaganda ligada à direção do PCB em Santa Catarina, atuava desde 1975 nos bastidores do movimento estudantil da UFSC (fui aluno do Colégio de Aplicação por sete anos e conhecia a Universidade por dentro). Tinha contatos com quase todos os líderes acadêmicos (alunos e professores).
Cheguei ao local dos protestos com os estudantes que o lideraram. Deixamos o DCE e descemos pela rua Tenente Silveira distribuindo panfletos e com as faixas enroladas embaixo dos braços. "Abaixo a exploração", "Abaixo a fome", "Mais arroz e mais feijão". Tudo começou timidamente. As escadarias da Catedral estavam repletas de crianças das escolas levadas pelo Governo do Estado, mas que aderiram depois ao protesto. Os estudantes da UFSC começaram a gritar as palavras de ordem. Os ânimos foram se alterando. Havia um "clima", alguma "coisa no ar", a sensação de que algo ía acontecer. Figueiredo apareceu na janela. O coro já era o de uma multidão. Ele fez um sinal com os dedos e a massa entendeu que ele estava mandando a gente tomar naquele lugar. Um líder do torcida do Avai puxou: "Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos Figueiredo vá pra puta-que-o-pariu" - Figueirense foi substituído por Figueiredo. O sujeito que começou com isso é guia turístico no terminal Rita Maria.
Foi então que o ditador que tentava vender a imagem de João, o amigo do povo, partiu para a ignorância e desafiou o governador Jorge Bornhausen a enfrentar os estudantes no tapa (o próprio Bornhausen me declarou isso). Jorge recusou. Figueiredo ficou encolerizado e foi contido pelos seguranças. Depois foi ao Ponto Chic, onde o tumulto continuou. Nesse meio tempo, os manifestantes destruíram tudo o que lembrava a visita presidencial: as faixas e bandeirolas, um enorme balão colocado na altura do antigo Miramar (foi arrastado pela multidão ao redor da praça), cartazes, e uma placa que seria inaugurada em homenagem a Floriano Peixoto, mas que se fosse em honra ao Senhor dos Passos teria o mesmo destino.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu. Não houve qualquer tentativa de inauguração da placa. Quem organizou o protesto e dela participou, nem sabia da sua existência. Só depois do dia 30 de novembro de 1979 é que se tomou conhecimento. O autor da invenção de que a Novembrada fora motivada pela homenagem a Floriano é o sociólogo Robert Henry Srour (A política dos anos 70 no Brasil. São Paulo: Econômica Editorial, 1982) - um "livro interessante, mas incompleto", segundo Luis Felipe Miguel.
O então candidato pelo PMDB à Câmara de Vereadores de Florianópolis, Rogério Queiroz, que na época da Novembrada não residia em Florianópolis, aproveitou o embalo. Uma vez eleito, começou em 1983 uma campanha para mudar o nome da cidade, logo angariando as simpatias dos descendentes dos fuzilados na Revolução Federalista de 1893-95 na ilha de Anhatomirim e de outros. É bom esclarecer que só a partir desse momento os acontecimentos do final do século 19 ganharam visibilidade. Até então se tratava de um episódio desconhecido e/ou esquecido, como o Contestado era quase completamente desconhecido. A deturpação foi repetida por Eduardo Paredes em seu filme sobre a Novembrada. Outras áreas da criação cultural acabaram contaminadas. É possível que professores repitam isso nas escolas a seus alunos.
Reduzir a Novembrada a uma placa é desconsiderar a grande efervescência política na segunda metade da década de 1970 em Santa Catarina, sobretudo em Florianópolis. É não levar em conta a presença do PCB na organização do MDB no Estado, com importante participação desde 1966 e no pleito de 1974; a reorganização do movimento estudantil na UFSC iniciada sob a liderança de Marcos Cardoso Filho e sua expansão até a reorganização da UCE e da UNE, com o surgimento de diversos grupos políticos; a intensa campanha pela anistia motivada sobretudo pelas prisões de 4 de novembro de 1975 (Operação Barriga Verde, 42 integrantes do PCB presos); o surgimento de grupos feministas; a atuação da "geração mimeógrafo" de literatura e a agitação cultural (poucos se lembram das feiras de arte de rua em Brusque); o Núcleo Anarquista de Florianópolis (NAF); o jornal Contestado e a imprensa alternativa - circulação dos jornais Politika, Versus, Pasquim, Opinião, Movimento e Hora do Povo.
Se algum morto foi lembrado no momento em que se confrontou a ditadura, não foi nenhum do século 19, talvez Herzog, Manuel Fiel Filho ou dezenas de outros que perderam a vida combatendo o regime de 1964, sofreram o exílio e a perseguição. Ou as torturas sofridas pelos presos da Operação Barriga Verde em Santa Catarina - afogamento, choque elétrico, pau-de-arara, empalamento, "telefone", "latinha".... Os "desaparecidos" até hoje, por aqueles aos quais Figueiredo representava. Afinal, era isso o que denunciavam os poetas, alguns parlamentares do MDB, a imprensa alternativa e a campanha pela anistia. Era isso o que talvez estivesse presente no imaginário dos que fizeram a Novembrada, jamais os fuzilamentos do final do século 19.
Toda a agitação política dos anos 1970 será trabalhada num futuro livro, o primeiro de minha autoria que surge com um título pré estabelecido: Antes da Novembrada, com fartura de imagens (fotos, desenhos, cartazes, publicações, etc). Cobri a Novembrada. Estava lá. Não foi nada disso de que andam falando. O protesto foi político, contra a ditadura. Vincular o evento aos episódios de Anhatomirim é forçar a barra, diminuir a importância e a dimensão de manifestação que fugiu do controle dos organizadores e foi apropriada pela multidão que lhe deu um significado. E que não foi em nome daqueles aos quais dedico o presente artigo.
Celso Martins, Florianpólis-SC (11.1.2010)
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Nos dias seguintes à visita do ditador Figueiredo, a sede do DCE da UFSC na rua Álvaro de Carvalho (Centro), foi pichada por agentes provocadores. A pichação original dos estudantes é a que pede anistia (em branco). Foto: Orestes de Araújo.
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Estudantes ocupam a Reitoria da UFSC: cena comum entre o final dos anos 70 e início da década seguinte. Foto: Celso Martins.
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Bandeira da UNE hasteada em frente à Catedral no Ato Público do dia 4 de dezembro de 1979, foi retirada e levada por oficiais da Polícia Militar. Essa bandeira nunca foi reclamada, nem apresentada a ninguém. Foto: Celso Martins.
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5 comentários:
Oi Celso Martins,ainda tenho aquele dia na memória, morava numa república de estudantes na Rua Crispim Mira 43 fundos, e amigos me aconselharam a não ir ao protesto porque estava no oitavo mês de gravidez do meu primeiro filho.Fiquei frustradíssima em não ir para a rua naquele dia, porém no final tinha uma responsabilidade maternal intransferível, mas acompanhei de perto os acontecimentos.Abraços
Ótimo, a verdade deve ser dita....
Minhas lembranças batem com o que contas, e é a primeira vez que 'ouço' essa história da placa...
Celso, "delegado" velho de guerra, lucidez eh botimo.
Antonio (ex morador do Itambé na época)
Cascavel Pr
Grande artigo, Celso!
Eu lecionava na Escola Básica Lauro Muller e na hora que passei ali pela praça XV o presidente ainda estava na sacada do Palácio mas deu pra sentir que o clima não era de festa. Sobre a placa do Floriano Peixoto há quem mencione que até Franklin Cascaes, se não me engano, era um dos descontentes com o tal presente de
João Figueiredo. A verdade é que a NOVEMBRADA surpreendeu o país e a bucólica Florianópolis notabilizou-se ao descer das tamancas. Sem dúvida nada é mais autêntico do que a manifestação popular - só que os políticos nem sempre reconhecem. P.S.: Gostaria de perguntar ao escritor Olsen Jr.se no artigo sobre Jaison Barreto não há um equívoco aqui:
"em Blumenau (terra do senador e onde eu o conheci)". É que a terra do senador (caso se trate de berço natal), é Laguna se não me engano.
Entrementes...parabéns pelo artigo.
Abraços daqui, da terra de Anita.
Ma de Fatima Barreto Michels
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