25.2.10

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Tempos Modernos
Amílcar Neves

Para que serve o jornalismo?

Fernando Evangelista

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Tempos modernos

Por Amílcar Neves

Curitiba, PR - Só foi saber depois, pelo registro da câmara de vídeo que vigia o salão de café: bem vestido, bem apessoado, bem enfastiado com essa vida de vendedor e executivo de nível médio, o sujeito entrou no recinto, dirigiu-se ao balcão central a fim de avaliar as ofertas para o desayuno, deu uma rápida varredura, absolutamente entediada, pelas mesas e pessoas que as ocupavam, maioria brasileños inquietos de fala alta e voz estridente, e encaminhou-se para uma das mesas. Casualmente, sua cadeira dava costas, encostadinhas, para o encosto da cadeira de Mirela.

Mirela decidiu passar o Carnaval em Buenos Aires com a mãe e conhecer essa que diziam ser uma das cidades mais elegantes, belas e charmosas da América do Sul. O feriadão e o câmbio favorável, essas coisas, estimularam a aventura. Compraram um pacote de preço bastante acessível, pago em vezes, que incluía o voo fretado e quatro pernoites em hotel da Calle Bartolomé Mitre, bem próximo ao Congreso Nacional argentino, na Avenida de Mayo (Madres de la Plaza de Mayo, essas coisas, ali bem perto): hotel simples, porém honesto, que não faz feio à sua classificação de três estrelas.

Mirela viu no vídeo do hotel o sujeito cumprir o trajeto descrito acima, sentar-se atrás de si sem servir-se de nada que o balcão oferecia, levar o braço para trás como quem ajusta um paletó ou reposiciona uma alça que ameaça cair, pegar pela alça sua (dela) bolsa com pesos, reais, dólares, documentos e cartões de crédito, levá-la para a frente (dele), erguer-se, encobrir a bolsa com uma pasta de couro e, sem pressa, atropelo ou ansiedade, deixar o recinto, o rosto impassível. Sentada à frente de Mirela e, portanto, de frente para o crime, Margot nada viu do que sucedia com a filha.

Os trâmites de polícia e queixa, mais o cancelamento dos cartões, tomaram-lhes toda a manhã. À tarde, em plena Avenida 9 de Julio apinhada de povo, um larápio puxou com violência o cordão de ouro e a alça da bolsa de Margot. Como os objetos e a vítima resistissem com sucesso ao assalto, o homem esmurrou o peito da mulher, prostrando-a ao solo.

Buenos Aires, outrora tranquila, apenas vem confirmar uma incômoda e reiterada impressão de que, lentamente, a humanidade retorna à barbárie e ao egoísmo, movida por decisões caprichosas tomadas por uns poucos nas grandes corporações e nos governos dos países poderosos.

*Amilcar Neves, escritor.
Crônica publicada na edição de ontem (24.2)
do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC).
Reprodução autorizada pelo autor.

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Para que serve o jornalismo?


Discurso proferido por Fernando Evangelista*, paraninfo da turma de jornalismo da Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina, em fevereiro de 2010. Texto publicado originalmente em Nota de Rodapé.

Queridos alunos,

Conheço cada um de vocês e sei quanto empenho intelectual, físico e financeiro foi necessário para estarem participando desta cerimônia. É o coroamento de uma etapa, superada com dedicação, criatividade e talento. Vocês conseguiram.

Parabéns.

Hoje, porém, gostaria de falar de outra etapa, daquela que começará a partir desta formatura. Qual o significado de ser jornalista nos dias atuais? Para que serve o jornalismo no país em que vivemos? Qual é, afinal de contas, a missão que temos como jornalistas?

Que me desculpem os profissionais das outras áreas, mas o escritor Gabriel Garcia Marques tem razão: “o jornalismo é a melhor profissão do mundo”. Para quem é curioso, inquieto, para quem gosta de ouvir e contar boas histórias, para quem se interessa pelas coisas da vida, não existe profissão mais fascinante.

Mais do que um diploma, hoje vocês recebem um passaporte para o mundo.

O passaporte para revelar histórias não contadas, para contar histórias esquecidas, para investigar, para descobrir aquilo que à primeira vista ou à vista da maioria parece banal, mas que pode ser algo extraordinário. O jornalismo, não se esqueçam disto, nos dá a possibilidade de denunciar o que está errado e de anunciar o que pode ser.

E não é possível fazer isso sem ética – palavra tantas vezes usada sem distinção e sem critério, tão citada em discursos e tão esquecida na prática do cotidiano. Lembrem-se: a ética não é apenas um conceito filosófico, mas uma postura de vida. Ela exige que, desde já, vocês estejam dispostos a não abrir mão, em hipótese nenhuma, daquilo que Carl Bernstein, um dos repórteres do Caso Watergate, chamou de “a melhor versão possível da verdade”.

Como vocês sabem, esta busca pela melhor versão possível da verdade pressupõe persistência e coragem. É, obviamente, um percurso complicado, com obstáculos dos mais diversos, mas também muito gratificante.

Se me permitem algumas dicas: Não sigam pelo caminho mais fácil ou mais cômodo. Sigam o caminho que considerarem ser o mais justo, sempre. Não se deixem seduzir pelo poder, não se deixem contaminar pela arrogância. Não confundam equilíbrio com indiferença, nem ceticismo com cinismo. Ser ético é tomar posição.

Tomar posição não significa ver o mundo entre bons e maus, de forma maniqueísta. Pelo contrário, significa ir à raiz, saber contextualizar cada história e explicá-la de forma coerente e clara. Tomar posição é conhecer bem o chão que estamos pisando, para que as falsas aparências não nos enganem ou nos confundam. Tomar posição é estar encharcado de realidade.

E o nosso mundo, onde quase dois bilhões de seres humanos vivem privados dos direitos mais elementares, não deixa espaço para ilusões. O Brasil, apesar de alguns avanços nas últimas décadas, ainda é a terra da desigualdade, fruto da indecente concentração de riqueza e de renda. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 10% dos brasileiros mais ricos detêm 43% da riqueza nacional, enquanto os 10% mais pobres, apenas 1%.

Tomar posição é, entre outras coisas, revelar essa realidade, quase sempre mascarada por números e estatísticas, às vezes equivocados, às vezes precisos, mas sempre frios e distantes. Essa realidade tem nome e sobrenome, tem história. E não é natural. Essa é a missão do jornalista, este é o grande desafio: Mostrar aquilo que as vozes oficiais tentam camuflar, fiscalizando o poder, seja ele qual for.

Infelizmente, há muito tempo, a mídia deixou de ser o quarto poder para, em muitos casos, se tornar um quarto no poder. Hoje, como vocês sabem, os principais poderes são o econômico, o político e o midiático – cada vez mais enredados um no outro. Santa Catarina é um exemplo emblemático, onde os principais veículos de comunicação estão nas mãos de uma única empresa, o que fere a Constituição, elimina a pluralidade de ideias e enfraquece a democracia.

Gostaria de contar para vocês, caros formandos, uma história que nunca contei em sala de aula e provavelmente nenhum de vocês conheça. É uma história que aconteceu com a minha família e está diretamente relacionada ao jornalismo.

Na virada do século, um magistrado conhecido por seu idealismo e por sua integridade, assumiu a presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Este mesmo magistrado, anos antes, havia implementado e coordenado a primeira eleição computadorizada da América Latina.

Como presidente do Tribunal de Justiça, este magistrado, entre outros tantos projetos, criou 50 Casas da Cidadania, projeto arrojado e inovador – buscando a conciliação e prevenindo litígios.

Este homem sempre soube que seria mais fácil fazer o jogo dos arrivistas, dar de ombros, ser indiferente. Porém, ele havia escolhido essa profissão para lutar por justiça, para seguir pelo caminho que considerava ser justo e nunca abriu mão disso. Agiu assim durante os 40 anos de sua carreira, incansavelmente.

Tempos depois de deixar a presidência do Tribunal, já aposentado, foi acusado de algo que não tinha feito, que jamais faria.

Este magistrado, Francisco Xavier Medeiros Vieira, é meu pai.

O mais dolorido dessa história, para mim, foi perceber que alguns jornalistas, alguns colegas, sem nenhum pudor, compraram e divulgaram a acusação infundada. O que valia era o espetáculo – mesmo que este espetáculo estivesse destruindo a reputação de uma pessoa honesta.

Então, como professor, como repórter, como alguém que já vivenciou uma injustiça por parte da imprensa, eu digo a vocês: jornalismo é a melhor profissão do mundo, mas não sejam ingênuos, investiguem sempre, não briguem com os fatos, duvidem, chequem as informações várias vezes e tenham sempre, sempre em mente, que vocês estão lidando com a vida e a história de outras pessoas.

Caros formandos, caros colegas: usem esta profissão - seja como repórteres, editores, blogueiros, assessores de imprensa, diagramadores, fotógrafos, pesquisadores, seja em que área do jornalismo for, para fazer luz sobre o nosso mundo. Façam que o jornalismo seja sempre um caminho para que se contem as histórias que precisam ser contadas.

E, mais importante de tudo, façam isso com paixão porque é este o segredo dos trabalhos bem feitos e dos profissionais bem-sucedidos. É a paixão que faz com que a gente ouse, desafie as probabilidades, surpreenda o mundo. É a paixão que fará, um dia, quando vocês estiverem bem velhinhos, dizer que tudo isso, a escolha desta profissão, esta vida inteira, valeu a pena.

Muito obrigado.

*Fernando Evangelista é jornalista. Entre outros eventos internacionais, cobriu a Operação Escudo Defensivo na Palestina em 2002; a guerra no Iraque em 2003; a guerra no Líbano em 2006 e o conflito entre curdos e turcos em 2007. É diretor da Doc Dois, produtora de documentários.

Outro texto do autor sobre o jornalismo no Observatório da Imprensa.

Um comentário:

Diego Wendhausen Passos disse...

Estive entre os formandos e acompanhei ao discurso do Fernando. Um ótimo professor e grande profissional, foi orientador do meu Trabalho de Conclusão de Curso, sempre primou pelo espírito crítico dos alunos, buscando humanizar os fatos, sem pré-julgar as pessoas em primeira instância. Na aula de Técnicas de Reportagem e Entrevista Jornalística, falou das experiências que teve nas estradas, nas coberturas internacionais, além de falar também do cotidiano no acampamento dos sem-terra, contando da organização do movimento, com projetos sociais e de alfabetização dos integrantes. Elogiou bastante a estrutura como entidade.