10.10.09

EMANUEL MEDEIROS VIEIRA

Sambaqui em dia de chuva. Fotos: Celso Martins.


Memória e Linguagem

Por Emanuel Medeiros Vieira

Quero falar da memória não como algo mecânico, mas como base de toda a identidade.

Memória como instrumento de justiça e de misericórdia.

Não por acaso, na mitologia grega, Mnemosina, a memória, é a mãe das Musas, ou seja, de todas as artes, do que dá forma e sentido à vida.

Sim, ela protege a vida do nada e do esquecimento.

A literatura não deixa de ser (também) um instrumento de transfiguração de um momento (eternizar a memória).

Uma busca de perenizar o instante para convertê-lo em sempre.

O ato da lembrança é ao mesmo tempo caridade e justiça para as vítimas do mal e do esquecimento.

Muitas vezes, indivíduos e povos desapareceram no silêncio e na escuridão.

Muitos devem se lembrar das ditaduras que, apagando as fotografias dos banidos querem, em verdade, apagar a sua memória.

A memória é resistência a um tipo de violência: àquela infligida às vítimas do esquecimento.

A memória é o fundamento de toda identidade, individual e coletiva.

Guardiã e testemunha, a memória é também garantia da liberdade.

A linguagem é edificada para a construção dos textos que querem eternizar nossa brevidade, a nossa finitude.

Como observa a filósofa e historiadora, Regina Schöpke, “quanto mais inconsciente ou subliminar é a linguagem, mais fortemente ela age sobre nós, mais ela nos domina e nos dirige.”

Os filósofos e filólogos sabem disso.

Estes últimos, veem nela não apenas uma ferramenta da razão para dar conta do mundo, mas, sobretudo, uma segunda natureza.

“Algo que, de certa forma, produz o mundo, e não apenas o representa”, como observa a autora citada.

Os gregos já enfrentavam a questão.

Nietzsche – que além de filósofo era também filólogo – chamava esse universo da linguagem de “duplo afastamento do real”, de “segunda metáfora”.

Porque aí os homens lidavam com conceitos e não apenas com o mundo em si.

A linguagem pode ser instrumento de dominação, estimulando um preconceito racial, como fizeram os nazistas, alimentando o fanatismo e o preconceito, gerando um horror como raramente (ou nunca) se viu na História.

Todo sistema com ambições totalitárias, como detectou a pensadora, tem necessidade de produzir um discurso, uma mitologia e palavras de ordem.

O que é a publicidade que só pensa em vender, sem nenhum compromisso ético?

É um exercício mental doloroso, mas assim a gente pode entender como uma cultura que produziu tanta beleza com Goethe, Beethoven, Nietzsche, Hegel, Wagner e outros, tenha mergulhado, com o nazismo, na mais profunda irracionalidade, onde o Mal apareceu com toda a sua força, ou melhor, em toda a sua plenitude.

Tento meditar sobre esses assuntos, entre outras razões, porque a falta do estudo da filosofia para quem tem menos de 60 anos, criou um tremendo vácuo cultural.

Fundou-se o universo utilitário, da posse imediata. Só vale o que tem valor contábil.

Faço minha a proclamação de Michel Foucault: “Não se apaixone pelo poder.”


Homenageando Paulo Leminski, nos 20 Anos de sua morte:

“me enterrem com os trotskistas

na cova comum dos idealistas

onde jazem aqueles

que o poder não corrompeu



me enterrem com meu coração

na beira do rio

onde o joelho ferido

tocou a pedra da paixão”

(Poema “para a liberdade e luta”, do livro “Polonaises”)

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Cerrado Desterro (Resenha)
Catarse e testemunho existencial

Por Ronaldo Cagiano*

Das muitas leituras que podemos fazer de uma trajetória de vida ou de uma obra literária, a que melhor pode refletir o homem ou definir o escritor é o sentimento de indignação. Refiro-me àquele que nasce do espírito e da consciência de quem, ao olhar o mundo, é capaz de extrair dessa mirada a sua permanente visão crítica, como farol para seu posicionamento diante das questões que afetam o homem, o mundo e as instituições.

A vida e a literatura de Emanuel Medeiros Vieira, autor de cerca de duas dezenas de livros, é ressonância de sua imensa preocupação com o homem e sua transitoriedade. No conto, na poesia, no romance, na crônica ou nas intervenções jornalísticas, percebe-se um escritor mergulhado profundamente nas questões cruciais que dizem respeito ao ser e seu lugar no mundo.

Herdeiro de uma tradição literária humanista, Emanuel vem construindo sua bibliografia dentro de uma perspectiva crítico-filsófica em que a problemática existencial é tema recorrente em sua obra. A passagem do tempo, a morte, o sucateamento dos valores éticos e morais, o enterro das utopias, a incomunicabilidade do homem contemporâneo na sociedade globalizada (seduzido pelos fetiches do deus-mercado) e seu consequente isolamento num tempo de coisificação e etiqueta vêm sendo mapeadas pelo autor desde seus primeiros trabalhos poéticos e ficcionais.

Ainda há pouco, Emanuel experimentou uma prova de fogo em sua caminhada. Vitimado por uma infecção que afetou todo seu metabolismo, viveu seu apartheid psicológico num leito de hospital por algumas semanas. Nesse período, considerado um divisor de águas em sua vida, escreveu um obra tão pungente quanto arrebatadora, em que passou em revis(i)ta à sua trajetória pessoal e intelectual, legando um testemunho literário emocionante, inventário e balanço dessa terrível travessia. Cerrado desterro (Ed. Thesaurus, DF, 20008), primeiro volume de uma obra de cunho memorialístico e intimista, mas sem o vezo da autocomiseração ou sentimentalismo, abriga densa e (in)tensa indagação existencial. Vieira nos dá a conhecer a sua terrível experiência da enfermidade, ao mesmo tempo em que faz um meticuloso e introspectivo encontro de contas com o passado (tanto o pessoal como o político). Nesse texto candente, rememora suas lutas, discute temas hoje tão negligenciados na literatura e na arte, percorre os tempos difíceis da ditadura (quando colocou sua palavra a serviço da luta e da esperança), relembra os amigos, os livros de cabeceira, os autores que influenciaram sua formação moral, espiritual e filosófica e as relações afetivas e culturais. Nesse trânsito entre o passado e o presente, flertando com a realidade, a invenção e a memória, expõe a coerência dos propósitos que não morrem, sem envergonhar-se das ilusões que ainda alimentam sua alma, porque, apesar das contradições e dicotomias da era moderna, ainda crê na vida e faz da literatura sua catarse, seu salto dialético, sua ponte sobre os escombros da própria civilização.

Todo o trabalho de Emanuel, desde seus primórdios como estudante em Florianópolis ou Porto Alegre até radicar-se em Brasília, onde desde 1979 exerce a assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados, é um testemunho de seu inesgotável “sentimento do mundo”. Em seus livros, o poema ou a narrativa não se esgotam num simples projeto editorial ou mercadológico, é uma confissão íntima, uma declaração e uma confiança no trabalho criativo como êmulo de sua razão de ser e viver. Como Alfredo Bosi, que entende que “só a arte é capaz de tirar o homem de sua total imbecilidade”, ou Fernando Pessoa, para quem “toda literatura é sempre uma expedição à verdade”, Emanuel concebe seus livros como instrumento para se entender o mundo, para vencer a solidão, para compreender nossas fraquezas e limitações e, acima de tudo, para ir fundo, cada vez mais fundo, doa o que doer – e a quem doer – naquilo que incomoda, avilta, humilha e nos apequena, seja na vida, na literatura, na política ou na história das instituições. Seus livros, como um rio, como um mosaico, são vertentes e repositório de seu fluxo onírico, são expansões de seu aguçado senso de observação, são contundentes e vulcânicas extrapolações de um inconsciente que vasculha os escuros da alma, os infernos da vida e as mazelas da morte.

Com sua prosa visceralmente inquieta (e inquietante), Medeiros Vieira deixa uma valiosa contribuição, como autor e como homem, à inteligência e à bibliografia nacional, embora injustamente negligenciado pela lógica editorial do hegemônico e monopolista eixo Rio-SP. Seus livros são um repositório de idéias, sonhos, posições e preocupações com o nosso destino, o que mais uma vez se confirma no recém-lançado romance Olhos azuis, ao sul do efêmero (Ed. Thesaurus, DF, 2009), quando retoma a sua inesgotável capacidade ficcional e fabulatória, sem deixar de lado nas suas histórias o viés que sempre deve marcar a passagem do homem pela Terra, que é jamais perder sua disposição para se indignar diante das injustiças, do caos, do fracasso das ideologias e da derrocada dos valores. Como Borges, o autor catarinense também entende que “A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo.”

*Autor de Canção dentro da noite (poesia) e Dezembro indigesto (contos), dentre outros. Vive em São Paulo.

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