7.10.09

Á g u a s
t u r v a s


Por Amílcar Neves*

Assim como navegar em águas turvas: sabe-se que o perigo ronda a cada passo, isto é, a cada avanço, pois não há farol, não há sequer lua. Mesmo de dia a visibilidade do fundo, das ciladas submersas, perde-se apesar do sol esfuziante e da brisa refrescante, nada mais, o sol e a brisa, do que ardis para desviar a atenção, relaxar os cuidados, induzir à catástrofe.

No entanto, é necessário navegar, e há que ter perícia, competência e determinação para fazê-lo em águas turvas. Porque não te adiantam cartas náuticas, não te franqueiam mapas geográficos, não te apontam os acidentes geológicos, a alteração das marés e o trabalho dos ventos: apenas te advertem, genericamente, de perigos, riscos e adversidades que, por certo, hão de abater-se com fúria impiedosa sobre a tua cabeça. Estás avisada. Depois não reclames, não venhas com choros, ameaças e lamentações.

Só te falta dizerem: a vida é assim mesmo, não é não? Uma questão de mercado, afinal: se o povo quer telenovelas, por que insistir com novelas? Se busca a adulação da autoajuda, por que perturbá-lo com os prazeres elaborados do texto literário? Se ambiciona apenas ver, qual a lógica de teimar com o ler? Se deseja unicamente esperar o tempo passar, qual a graça de incomodá-lo com sofisticações e sutilezas? Por que não deixar as pessoas em paz, fazendo aquilo que estão há décadas acostumadas a fazer, ainda que seja isso nada mais do que fazer nada?

Assim como navegar em águas turvas é levar cultura para perto das pessoas. Estimule qualquer pessoa a ler (coisa que preste), coloque um livro (decente) em suas mãos, e ela... lerá. Descobrirá o prazer irreversível da literatura.

É isso o que faz a Barca dos Livros - uma biblioteca. Iniciativa privada (abnegada), é procuradíssima por muita gente da Lagoa da Conceição, da Costa da Lagoa, do Canto da Lagoa, do Rio Tavares. Gente que sai de longe, imaginem!, em busca de livro.

É uma vergonha uma cidade que não tenha uma biblioteca pública municipal em cada bairro - e querem nos enfiar mais vereadores na folha de pagamento. É uma vergonha não haver um único milionário nessa cidade que resolva bancar (com recursos próprios, pois incentivo fiscal é dinheiro público, nosso e não dele) um investimento social como a Barca.

A qual, teimosamente, navega em águas turvas. Prestes a ir a pique. Levando junto um bocado de gente: os seus usuários.


*Amilcar Neves, escritor.
Crônica publicada na edição de hoje (7.10.2009)
do jornal Diário Catarinense.
Reprodução autorizada pelo autor.

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