2.3.11

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R O M A R I A
(NO TERRITÓRIO DOS AFETOS)

(Carta para Lucas, Clarice, Célia, Maurício e Américo)

Uma missiva sentimental demais



Por Emanuel Medeiros Vieira

“Só uma palavra me devora: aquela que
o meu coração não diz”. (Suely Costa)


Não reparem: é romaria interior,

fragmentada carta não postada,

pobre prosa poética,

tosco hino de amor,

sentimental demais,

ouvindo Elis Regina

(ela também nasceu em 1945)

e Renato Teixeira.

Peço que toquem “Romaria” no dia da minha partida – hora de descer aos sete palmos.

(Queria também outras duas músicas, mas não é de bom dar muito trabalho nessa hora.)

Se algo ficar na retina de vocês, será na riqueza de alguma recordação,

somos criaturas da memória,

finitos continuamos sendo,

um dia, estaremos unidos numa coisa só: pó, estrume, rio, mar, fundidos nesse cosmos.

Nessa carta, eu queria informar –

quando eu for embora, se quiserem me “ver”, indico três locais:

A servidão que leva à casa azul e branca da Lagoinha

(havia um pé de pitanga), na minha mítica Desterro (não a cidade desfigurada de hoje), a Ilha em que nasci.

O segundo local: o Parque da Cidade, ou na entrada da SQS 114, em Brasília – no pilotis do meu bloco, onde peguei o Lucas no colo, ele só tinha poucos meses de vida, eu saía do hospital, mas a infecção ainda estava no meu corpo, vieram recidivas, mas isso agora não importa, a grama estava seca, comecei a chorar, e fui tomar um cafezinho com rosquinha na padaria, pois havia “sobrevivido” contra a previsão dos médicos (haviam me dado só dois dias de vida), já tendo recebido a unção dos enfermos por três vezes.

O tom parece piegas? É.

Me perdoem.

Estava escutando também “Jesus Alegria dos Homens”, de Bach, e “Yesterday”.

São as três músicas que, afetivamente, mais me tocam nesse dia de hoje, no mês em que, se me for permitido, completarei 66 anos.

Hoje, no primeiro dia do mês de março de 2011, não consigo escrever de outra forma.

Há muito gestava o texto.

Já fizera vários rascunhos.

A morte? Passagem.

O tempo – que antes me atormentava – está mais serenado no meu coração.

Ele – segundo o meu saudoso amigo Caio Fernando Abreu –, é um orixá que não incorpora porque humano algum suportaria o seu peso.

Insisto (antes de dar os trâmites por findos), olhando bem, você me enxergarão “além de mim”.

O terceiro lugar no qual vocês me “verão”, será aqui em Salvador, na Praça Castro Alves, um local maravilhoso, onde amo contemplar a Baía-de-Todos-os Santos.

Se Ele Existir, foi um dos locais em que cheguei muito perto Dele.

E agora anoitece.

A raiz do meu amor por vocês é irrevogável –

vai comigo à eternidade.

Nos três locais, vocês me verão, sim, me enxergarão além do esquecimento, além desta breve passagem, além de mim, além da vida, além do pó do que serei.

Sim, me verão – estrela, semente, ou bússola em busca de um oceano maior.

(E ensinem para os seus filhos: é nosso dever reconhecer o mérito de quem cumpre a vida.)

(Salvador, fevereiro e março de 2011)

Lagoinha Pequena (Campeche, Florianópolis-SC). Fotos: Celso Martins

Um comentário:

Julio disse...

Belas palavras, músicas e lugares. Voce é uma pessoa especial e deve estar preocupado com a mudança de idade e a finitude de tudo. Mas nao te preocupa com o the end, meu avo foi a quase 90 e ainda fumava.Seguem dois pensamentos que acho legal sobre este tema, o primeiro dizem que era do John Lennon mas parece que é de autor desconhecido:
“Viva cada dia como se fosse o último. Um dia você acerta.” e o outro é: •“Eu não tenho medo da morte, apenas não quero estar lá quando acontecer.” Woody Allen

Um abraço do sobrinho e amigo, César