26.8.09

Sem tortura, por favor


Por Amílcar Neves*

Antes que me torturem, devo confessar que, muitas vezes, este espaço foi preenchido com textos escritos na Ressacada.

Desculpem-me, sei muito bem que estádio de futebol é lugar para se torcer ensandecidamente, desarrazoadamente, com paixão e sem razão. Pelo menos, sem lógica alguma, pois torcedor não é um ser racional. Se for, ele abandona seu time e vai criar peixinhos de aquário, onde certamente haverá relação mais direta entre causa e efeito. Praças esportivas por natureza repelem toda manifestação cultural, desde quadros a livros, da leitura à escritura.

Por outro lado, também sei à exaustão que crônicas para jornal, ou quaisquer outros textos literários, devem ter sua gestação e parto restritos ao local apropriado: o sacrossanto gabinete do escritor, o refúgio da sua resplandecente torre de marfim - jamais os assentos de concreto de um campo de futebol, nunca em meio ao tumulto popular, seja das torcidas, seja do cotidiano enlouquecido e barulhento das cidades grandes.

Claro que, se me torturarem, confessarei de pronto tudo que me ditarem dizer, assinarei de imediato todo papel que me colocarem à frente, a começar por cheques em branco, declarações racistas, promissórias impagáveis e promessas impagáveis (impagáveis de tão ridículas, feito aquelas que os políticos nos fazem, nos pregam a cada dois anos, pelas eleições).

Assim, antes que me torturem (sabe-se lá o que andam tramando contra mim, tantas já que me aprontaram parentes colaterais e ascendentes imediatos, um advogado que contratei e até ilustres desconhecidos, afora os bancos, uma multinacional que me contratou, a Receita Federal, parlamentares e os governos em geral), para tentar evitar a tortura, reconfesso que escrevo esta crônica na refulgente Ressacada, com arquibancadas, cadeiras e camarotes entupidos de gente à espera do jogo entre Avaí e Flamengo.

Além de confessar, prometo aqui, solenemente, que deixarei para redigir a derradeira linha deste texto daqui a três horas, a fim de que possa dar notícia, aos dois ou três caridosos amigos que me leem, moram longe e não acompanham o Campeonato Brasileiro, do resultado do jogo.

Agora, por favor, permitam-me a devida pausa neste domingo para curtir o clima das torcidas e, a seguir, o futebol em si.

Pois então, depois dos 3 a 0 deste início de noite, o Avaí passou a ser o quarto melhor time do Brasil.

* Amilcar Neves, escritor.
Crônica publicada na edição de hoje (26.8.2009) do jornal Diário Catarinense.
Reprodução autorizada pelo autor.

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